"O sitio da mulher morta" - BIOGRAFIAS ERÓTICAS
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"O sitio da mulher morta"


Novelas Eróticas
Manuel Teixeira-Gomes






O SÍTIO DA MULHER MORTA


Já totalmente impossibilitados de trabalhar, os Elisiários, meus velhos caseiros dos Pegos Verdes, tinham abandonado a propriedade recolhendo-se a um casebre que possuíam na povoação vizinha, a Figueira. Mas como eu lhes desse uma pensão, que embora insignificante os ajudava a viver, mostravam-se-me gratos, e iam amiúde ao Convento (era assim designada a propriedade, desde tempos imemoriais, por encerrar o único convento que existia léguas em redor), não para fazer as suas devoções, mas para observar o que lá se passava e dar-me conta do que espiolhavam se alguma vez adregava encontrarem-se comigo. Tinham sido eles que me indicaram para sucessor o António Sagreira, dono de duas courelas minhas estremenhas, rendeiro de várias várzeas que me ficavam fora de mão, e habitual e principal empreiteiro do serviço das belgas que transformam os matos em terras de semear.


A indicação surpreendera-me bastante, porque havia entre eles uma antiga rixa que não admitia tréguas, porém depressa compreendi as razões que a motivaram: o Sagreira era implicativo e pechoso, e tinha três filhos valentões que lhe reforçavam a argumentação, mesmo quando sofística; assim os meus velhos caseiros se vingavam dos vizinhos com quem haviam andado às bilhardas, e ao mesmo tempo impingiam-me um sucessor que pelas suas malas-artes me faria lamentar a ausência dos reformados.

Com efeito a entrada em funções do Sagreira iniciou uma era de revolução a que nada escapava. Meteu no Convento, na qualidade de quinteiro permanente, o filho mais velho, que casara havia pouco, e tanto ele como a mulher entendiam de hortejo; limpou de mato uns olivais abandonados e que realmente mereciam melhor sorte; tirou às árvores a lenha seca, o que logo lhes deu melhor aspeto: tudo parecia rejuvenescer, especialmente o pomar de laranjeiras, que eu tinha e tenho em grande estimação e andava bastante descurado (são magníficos os frutos que dá, de duas qualidades, sangue e umbigo); descobriu, desenterrou, patenteou os mil marcos da propriedade que os meus inúmeros vizinhos fingiam ignorar, para se apropriarem de terrenos que me pertenciam; pôs cobro ao roubo das estevas, que os forneiros mandavam colher como se não tivessem dono, e expulsou os pastores e seus rebanhos que pastavam livremente por todos os cantos da herdade. Mas tudo isto à custa de quantas coimas! Elas choviam, e quando, ao domingo, o Sagreira vinha cobrar a féria, e me trazia a relação das coimas da semana eu punha as mãos na cabeça, fingindo-me assustado, e exclamava:

– Tome cuidado, Sagreira; essa gente acaba por lhe dar cabo da pele e de toda a sua família.
– Não tenha Vossenhoria medo que tudo é gente pacífica; o que eles precisam é sentir a mão do dono e ninguém há de tugir nem mugir.

Porém um dos acoimados era cabreiro do Sr. Baltasar Ponciano, proprietário importante e influente eleitoral da Mexilhoeira Grande, que se não acomodou com o caso, e deu por paus e por pedras para conseguir a anulação da multa, a qual lhe abalava o prestígio. Por fim veio ter comigo (as nossas relações eram excelentes), mas eu não podia decentemente exautorar o meu encarregado e recusei atendê-lo.

Então ele desabafou: não houve nome feio que não chamasse ao Sagreira, e retirou-se vaticinando que eu me havia de arrepender amargamente de lhe ter confiado a administração da propriedade, e ao mesmo tempo jurava que se havia de vingar.

As terras nos Pegos Verdes que pertenciam ao Sr. Ponciano haviam sido mal e porcamente adquiridas, por ocasião de umas partilhas judiciárias entre menores de que fora nomeado tutor, e estavam todas mais ou menos encravadas nas minhas, consistindo a parte principal numa extensa mas estreitíssima courela que dava passagem aos moradores do Convento, encurtando-lhes consideravelmente o caminho. De memória de homem nunca fora contestado o direito a essa regalia. Ora dois dias depois da visita do Sr. Ponciano apareceu-me no escritório o Sagreira todo açodado e aflito a participar-me que tinham cortado o caminho, cavando fossos à entrada e à saída da courela.

– Aquele mariola do Ponciano... – ia ele comentar em tom de funda indignação, e não foi pequena a sua surpresa quando eu, com perfeita calma, atalhei para lhe dizer que mandasse atulhar os fossos, e continuassem a servir-se do caminho como se nada houvesse ocorrido.
– Então Vossenhoria toma a responsabilidade...
– Não seja parvo, Sagreira, e faça o que lhe digo.
– Vossenhoria é quem manda... – consentiu ele despedindo-se, o rosto já iluminado com a perspetiva da raiva do Ponciano, e a crescente autoridade que o facto lhe acarretaria, a ele Sagreira.

Mas logo ao domingo seguinte, de orelha caída, veio comunicar-me que o Ponciano mandara levantar paredes de taipa, de metro e meio de altura, no sítio dos fossos.

– Agora é que a coisa não tem remédio nenhum...
– Tem remédio, tem. Hoje mesmo, quando chegar aos Pegos Verdes, mande deitar abaixo as taipas, e passem pelo caminho como de costume.
– Essa agora... essa agora... – pôs-se ele a ruminar, com os olhos esbugalhados direitos a mim. – Mas Vossenhoria é quem manda, e as pessoas aqui presentes – voltando-se para outros quinteiros que assistiam à cena – servirão de testemunhas de que eu não fiz mais que obedecer às ordens que me deram...

E alegre e leve como um pássaro, saltou em cima da mula que o esperava à porta do escritório, e lá foi a galope cumprir a grata missão.

Porém o Sr. Ponciano não era homem para se acomodar com estes expedientes e logo que o advogado, que foi sem demora consultar, o desenganou, aconselhando-o a que estivesse quieto, deixando a passagem livre, a não ser que preferisse intentar uma ação judicial, que seria longa, dispendiosa, e de resultados incertos, o Sr. Ponciano recorreu à intimidação, esboçando uma tragédia que apavorou o Sagreira e a sua prole.

E no domingo, quando já o não esperava e me encontrava conversando com vários caseiros, ei-lo que me aparece, quase que amparado pelos dois filhos mais velhos, o aspeto mais morto do que vivo, e todos três com lenços amarrados à roda da cabeça, como é uso e costume nas crises sezonáticas.

Dados os bons-dias em voz sumida, sem levantar os olhos do chão, e perguntando-lhe eu, realmente apreensivo de os ver assim amachucados, se estavam doentes, o Sagreira, em tom dramático, replicou:

– Prouvera a Deus que fosse doença e doença mortal, pois tudo era melhor do que aquilo que o velhaco do Ponciano imaginou para nos atormentar. Do que é que aquele ladrão se havia de lembrar?... Saiba Vossenhoria que arranjou um malfeitor, um bandido, um assassino, saído há poucos dias da cadeia de Lagos, e pô-lo a guardar a courela, armado de uma escopeta de dois canos, com ordem de dar um tiro em quem quer que tente passar pelo caminho, e diz ele, alto e bom som, que se Vossenhoria lá for é o primeiro que o apanha...

– Ah! sim? – atalhei eu entre risonho e agastado. – É só isso? Pois vá-lhe já dizer que na quarta-feira, às dez horas, eu lá estarei e veremos então quem leva a melhor...

Com esta declaração perentória os Sagreiras pareciam ressuscitados, e sem mais demora abalaram para os Pegos Verdes; eu é que ainda bem não tinha proferido aquelas palavras imprudentes já delas me arrependera, e sentia-me como que atordoado com a ideia de me ir defrontar com um malandrim da mais ínfima espécie, capaz, provavelmente, de me desacatar e insultar. E tudo isto por causa de um caminho que só dava comodidade aos Sagreiras! Mas não havia mais remédio senão cumprir o que prometera...

José Cravo chamava-se o assassino e como o Ponciano não possuísse nos Pegos Verdes cabana ou monte próprio para o albergar, metera-o em casa de um vizinho meu, que era dos mais encarniçados inimigos dos Sagreiras.

Sem perder tempo, nesse mesmo dia telegrafei a um escrivão de Lagos, meu amigo, pedindo informações pelo próximo correio, as quais recebi logo na noite seguinte.

O José Cravo era enjeitado, alentejano, e tinha o cadastro muito carregado com cenas de tiros, escapando por milagre ao castigo até que a última lhe valera seis meses de prisão, pena que cumprira não havia ainda três semanas.

Cabreiro de profissão, fora empregado do Ponciano numa herdade para os lados de Vila do Bispo, e aí se desouvera com um companheiro, mimoseando-o com uma chumbada nas pousadeiras. Durante o processo queixara-se amargamente do patrão, que, afirmava ele, fora a causa de tudo e o abandonara. Tinha uma amante, «lindíssima rapariga de costumes fáceis», mas que lhe era dedicada e fiel embora ele a maltratasse. Saído da cadeia, constava-lhe que partira para a Mexilhoeira, onde o Ponciano o acolhera, dando-lhe casa e cama, sem dúvida receoso de algum atentado grave.

Má rês, o tal Zé Cravo... Nada me sorria o inevitável encontro, e matutando no partido que poderia tirar das informações recebidas, me pus na quarta-feira a caminho dos Pegos Velhos, de forma a chegar exatamente à hora indicada.

Conseguiria eu impor-me ao respeito do assassino, ou, adotando melhor política, compor-me com ele? Já na pendente desta última solução, lembra-me que para me justificar de antemão eu pensava: a verdadeira definição do político é um homem que aprecia os factos pelo que eles realmente são, e por eles regula a sua conduta... Estaria eu também com medo? Felizmente ninguém lia o que me ia na alma...

À entrada da herdade esperavam-me o António Sagreira e os filhos (todos ainda de lenços amarrados à volta da cabeça), e logo me contaram as bravatas e ameaças com que o Zé Cravo acolhera a notícia da minha vinda, fanfarronadas ainda não havia nada repetidas, em voz bem alta diante dos numerosos vizinhos, reunidos à entrada do caminho para assistir ao nosso encontro.

Quando lá cheguei o José Cravo estava de costas, na extremidade oposta da passagem, arengando, com grandes gestos, para um grupo de curiosos, e de costas ficou, como se não tivesse ouvido o trincolejar da carrinha em que eu vinha, ou como se a minha presença lhe não merecesse o mínimo cuidado, de modo que me apeei, entrei na courela, e só quando lhe bati com a mão no ombro é que ele se voltou, encarando-me com um sorriso escarninho.

– Então o senhor é que é o assassino? – perguntei.
– O assassino?
– Sim, toda a gente sabe que o Ponciano o encarregou de me matar.
– E o senhor quem é?
– Ó José Cravo, não te ponhas com graças... Vamos conversar a sério e acabemos com este entremês. Nós podemos muito bem entender-nos. Sei que te encontras num mau passo, e se estiver na minha mão o tirar-te de apuros podes contar comigo. De que é que tu mais precisas agora já?...
– Ora isso é que é falar direito... Pois saiba Vossa Excelência...

E contou-me, sem entrar em pormenores, que o Ponciano fora a origem da sua desgraça, mas, sem mais ninguém a que se chegasse ao sair da cadeia, a ele se acolhera, e aceitara o encargo de impedir a passagem pela courela a qualquer outra pessoa que não fosse eu, pois bem sabia que era esse o meu direito; que o Ponciano prometera dar-lhe ali mesmo um monte, que ia construir, com rebanho de cabras e ovelhas em que o interessaria, mas ele não acreditava nas suas promessas, e se lhe dessem qualquer outro emprego, fosse qual fosse, aceitava, pois o seu maior desejo era trabalhar honradamente. 

Observou-me que eu tinha na herdade vários montes desabitados, e um deles com um aprisco ainda em muito bom estado, e que seria uma grande esmola dar-lhe guarida e tomá-lo para cabreiro...

Contente com o inesperado jeito que o caso tomava, e sem mais reflexões, chamei pelo Sagreira, participei-lhe que o José Cravo já não estava ao serviço do Ponciano, e subindo para a carrinha fomos os três para o Convento, em boa camaradagem, com visível estupefação, ou melhor, desapontamento dos espectadores.

Chegados ao Convento mandei servir o abundante farnel que trouxera de casa, convidei-os para almoçar, e durante a refeição fomos combinando a melhor forma de instalar o José Cravo no monte com redil, que ficava para os lados da herdade chamados da Malhada Verde, deixando assente que se compraria o primeiro gado no próximo mercado de Portimão, que era daí a oito dias.

O António Sagreira mal tocava na comida; não levantava os olhos do prato e a custo se lhe arrancavam as palavras em contraste com o José Cravo que parecia ter duas bocas (uma para falar e outra para comer) em plena atividade; exultava, já entrado no sonho da futura e infalível felicidade... O curioso, porém, é que loquaz e expansivo como parecia, sempre que eu tentava obter explicações sobre a sua repetida afirmação de que o Ponciano fora o «causador da sua desgraça», ele mudava de conversa.

Quando acabámos o almoço, e íamos dar uma rápida volta pela horta (eu estava com pressa de regressar a casa), reparei na espingarda que ele punha a tiracolo, magnífica arma de fabricação inglesa, que devia ter custado bom dinheiro, e perguntei-lhe onde a comprara.

– Não a comprei – explicou mastigando as palavras –, pertencia ao Sr. Ponciano, mas o diabo me leve se ela jamais lhe voltar às mãos...

Findo o passeio pela horta, disse ao José Cravo que fosse imediatamente ao monte, ver as reparações de que necessitava, e subi para a carrinha com o Sagreira, a quem fui dando as últimas instruções sobre o caso, mas ele parecia sucumbido; só abria a boca para repetir: «Vossenhoria é quem manda...» Ao separarmo-nos, à saída da propriedade, reparei que tinha as lágrimas nos olhos:

– Que é isso, Sagreira?
– Não é nada, não é nada – e em voz cava: – Realmente meter Vossenhoria debaixo das suas telhas um assassino da força do Cravo!...
– Não seja tolo, Sagreira. Você cá está para o pôr na ordem, se for preciso...

Sozinho no carro, algo aturdido com a lembrança do que sucedera, e tendo nos ouvidos as últimas palavras do Sagreira: «meter um assassino debaixo das minhas telhas», não conseguia pensar noutros assuntos (alguns havia então bem sérios na minha vida) e vi-me constrangido a fazer rigoroso exame de consciência. 

O que me levara a proceder com tanta benignidade, e em vez de buscar uma solução que afastava para sempre o José Cravo, porque fora que eu lhe proporcionara ensejo de ficar ao meu serviço? A impressão que o seu aspeto me causara tinha sido boníssima: de estatura regular, admiravelmente proporcionado; não sei que leveza e elasticidade nos movimentos que surpreendiam; a pele fina (efeito dos meses passados à sombra), e sem o encardido, o queimado da gente do campo; elegante (não é exagero) no seu traje de soriano; a cintura estreita apertada na cinta preta, muito larga; e nos olhos, que sorriam, uma expressão de lealdade, de confiança quase infantil... 

E o modo como ele dizia «Vossa Excelência», com a naturalidade de quem está habituado a tratar com pessoas de boa sociedade. Mas tudo isto não explicava coisa alguma. O seu cadastro lá estava, para me indicar o perigo das complicações que a sua estada nos Pegos Verdes acarretaria, e certamente ele teria aceitado qualquer soma razoável, que eu lhe oferecesse, para abandonar o serviço do Ponciano e voltar para o Alentejo.

Havia também o gosto de arreliar o Ponciano, ao qual eu votara profunda aversão (com o rancor do proprietário), desde que ele me empalmara (por tão vis processos) as courelas encravadas na minha herdade; mas isso, tão-pouco era razão suficiente...

Perscrutando com insistência, ao fundo das minhas reflexões perpassava, como fugidia sombra, a frase da carta do escrivão de Lagos, referente à amante do José Cravo: «lindíssima rapariga de costumes fáceis». Isto na boca (ou na pena) de um velho e pacato pai de família, como era o meu correspondente, indicava realmente que a rapariga devia ser formosíssima. E era-lhe fiel e dedicada apesar dos maus tratos... Uma pérola! Seria para a conhecer, para a ver, que eu procedera de maneira tão insensata? Quando cheguei a esta hipótese, desatei a rir, e o facto é que se me aplacou a inquietação... «Ora seja o que Deus quiser» – resumi, já sereno e resignado.

Passaram duas semanas sem que me fosse possível voltar aos Pegos Verdes; entretanto fez-se a compra de gado, estipulando-se as condições da criação em termos largos e generosos, que mais encanzinaram os Sagreiras. O José Cravo mostrava-se contente e grato, e mais satisfeito ficou quando eu lhe disse que o negócio de leite, com a fabricação de requeijões e porventura de alguns queijos (se ele os soubesse preparar) ficava para a mulher, que teria metade no produto da venda, mas com a obrigação de me trazer o que fosse necessário para consumo da minha casa.

Durante esses quinze dias não consegui avistar a pérola; ela foi duas vezes à minha casa da Rua Direita, em cujo quintal e cavalariça os quinteiros abrigavam as bestas e juntavam as provisões, mas desencontrámo-nos. À minha mulher, porém, ou porque a notasse, ou mercê de algum «espírito santo de orelha», não escapou a formosura da cabreira e com acentuada ironia felicitou-me pela preciosa aquisição.

Isto surpreendeu-me porque na copiosa grinalda dos seus defeitos era a ciumeira que menos brilhava, e ainda mais me atiçou o desejo de contemplar tão peregrina beldade.

Entrementes, a pretexto de agradecer (o que nunca fazia) a minha habitual esmola, veio visitar-me o velho Elisiário, caseiro reformado dos Pegos Verdes, e depois das acostumadas lamentações, que abrangiam sempre os sofrimentos hemorroidais do casal (e não haver remédio nenhum para semelhante praga! pois que Deus nosso Senhor se compadeça da nossa desgraça!); após as jeremiadas de natureza física e espiritual, veio ao assunto exclusivo da sua visita, pelo qual eu esperava logo que o vi aparecer. Nos Pegos Verdes iam mosquitos por cordas: andava o diabo solto. O José Cravo não se entendia com os Sagreiras e recusava obedecer às ordes que lhe davam; ele é que queria a toda a força mandar, etc. Mas se era grande a guerra entre os homens, não andava menos acesa entre as mulheres, por causa da tal santinha da amiga do José Cravo, que a todos tratava como se fosse ela a rainha e «a verdade manda que se diga: rainha mais linda nunca ninguém viu...»

– Você reparou bem nela, Elisiário?
– Se reparei! Nela me ficaram os olhos. Ai, quem tivesse trinta anos menos...

Pois também o Elisiário! Decididamente era indispensável que eu visse quanto antes aquela maravilha.

Ao almoço, minha mulher, a quem o Elisiário fizera igual relato, aludiu à desordem, ajuntando que urgia acabar com semelhante escândalo.

– Não te aflijas com o que não é da tua alçada – repliquei em tom azedo. –

Na próxima semana vou passar uns dias aos Pegos Verdes e logo verei o que mais convém fazer.

O meu escritório estava instalado numa casa térrea, assaz vasta, à entrada da vila, mesmo no ponto onde começava a estrada da Rocha. Ali tinha os meus livros, que constituíam já uma biblioteca respeitável, e alguns quadros e objetos artísticos da maior estimação, adquiridos durante as minhas viagens, e ali passava quase os dias inteiros, principiando logo de manhã, pois era lá que eu ia tomar banho e mudar de roupa.

Tudo parecia preparado para a eventualidade (que eu nem por sombras entrevia) de uma separação conjugal: cozinha com todos os petrechos necessários; casa de jantar, e quarto de cama arranjado com certo gosto: um grande leito rococó de pau-santo, coberto com colcha de damasco verde-mar, guarda-roupa da mesma madeira e estilo, e um espelho de balanço, para corpo inteiro, diante do qual as raparigas do campo embasbacavam, se por acaso eu lho mostrava. A cozinha dava para um pátio ladrilhado com saída própria, e como a casa fizesse esquina por ali se escapava quem não quisesse ser visto pelas pessoas que estivessem dentro de casa ou à entrada principal.

Tudo isto era favorável aos encontros amorosos e para esse fim a aproveitava com certa frequência; porém minha mulher, que tinha, como já apontei, a qualidade rara de não ser ciumenta, pouco implicava com as perspetivas da minha infidelidade, e nesse campo deixava-me inteiramente à vontade.

Aos domingos, a partir das onze horas, vinham os caseiros cobrar a féria e dar conta do que se passara nas suas respetivas fazendas, ficando geralmente tudo despachado às duas da tarde, salvo em dias de mercado em que as transações com o gado obrigavam a maiores demoras. Eu ia a casa almoçar às nove e meia e uma hora depois era certo encontrar-me no escritório.

Às oito horas do próximo domingo, quando me preparava para sair, bateram-me à porta de uma forma tão hesitante que julguei ser brincadeira de moços e não acudi. Logo repetiram os toques de aldrava, porém ainda sem firmeza nem jeito próprio de quem viesse em comissão de serviço; e mais persuadido de que eram garotos da vizinhança aproximei-me pé ante pé, e de mau talante abri subitamente a porta, para surpreender e talvez castigar os importunos.

No corredor reinava completa escuridão, e pela porta que escancarei rompeu, vivo como fogo, um quadro de sol sustendo uma figura de rapariga, que aos meus olhos encandeados mais pareceu visão sobrenatural. O choque foi tremendo, baralhando-me totalmente as ideias. Aqueles olhos, aquela boca, aquele sorriso... Mas era ela, sem a menor dúvida...

– Júlia... és tu?... – exclamei, puxando por ela e fechando a porta. – Júlia, como estás linda... – E sem mais preâmbulos comecei a beijá-la, e levei-a para o quarto de cama onde a luz era também escassa, pois estavam corridas as cortinas da janela.

No acesso de embriaguez que me tomara eu só pensava em satisfazer os sentidos, e cheguei ao final da minha desvairada investida sem quase me aperceber da silenciosa passividade daquela mulher, que se me não repelia tão-pouco me retribuía as carícias, ou dava a menor mostra de as apreciar ou saborear. 

Foi somente num instante de acalmia, quando pela centésima vez, entre beijos, eu repetia: – Júlia, minha querida Júlia – e ela de repente me perguntou: – Mas como é que que sabe o meu nome? – foi então, e só então, que eu caí em mim, adquirindo a consciência do que se passara.

Ela era o retrato vivo e exatíssimo de uma Júlia de quinze anos que eu, muito em rapaz no Porto, amara e desejara ardentemente, não lhe tendo alcançado as primícias porque ela me as recusasse, mas porque as circunstâncias o haviam impedido. A sua inesperada aparição, no deslumbrante quadro de luz que a envolvia, acendera essas recordações com vigor que sem me aperceber do absurdo, ou eliminando-me por gravoso, eu apertava nos braços a rapariga como se fosse a mesma Júlia de vinte anos atrás...

Viemos a explicações, mas apressadas e confusas porque o tempo urgia: esperava-me o almoço em casa e podia sobrevir algum importuno, como sucedia amiúde aos domingos, àquela hora. Júlia era com efeito o seu nome, mas no Algarve salvo o amante ninguém mais o sabia. Chamava-se agora Marta, e havia razões especiais que a impediam de usar o outro nome. Ela era natural do Porto e fora, novinha, atirada para a desgraça, de onde o José Cravo a libertara, livrando-a ao mesmo tempo dum mau passo em que involuntariamente caíra, e a obrigara a mudar de nome. Ouvindo-me chamar-lhe Júlia imaginou que eu a conhecera nalguma casa mal afamada, e não se atrevera a resistir, do que já estava arrependida, pois sempre fora fiel ao amante, a quem devia gratidão; além disso ele era capaz de a matar, só que suspeitasse da traição.

Enquanto falava parecia estudar-me o rosto a preceito; por fim o sorriso voltou-lhe aos lábios e começou a olhar-me com simpatia. Disse-lhe então que tencionava ir passar dois ou três dias aos Pegos Verdes, na semana em que entrávamos, e lá teríamos ensejo de conversar largamente sobre o passado e o presente, mas na certeza de que eu não desistia, fosse qual fosse o risco de continuar os deliciosos momentos daquela manhã, salvo se ela sentisse por mim qualquer invencível repugnância e se negasse terminantemente a satisfazer o meu desejo.

Protestou com veemência contra a ideia da «invencível repugnância» e para o provar beijou-me na boca, mas entrevia tanto empeço para renovar os nossos encontros que os julgava impossíveis.

– Mas tu podes voltar aqui ao escritório.
– Não sei; isto foi um acaso; e já me ia esquecendo o motivo que cá me trouxe. O meu homem aqui manda esta continha do pedreiro que trabalhou no monte e que ele não quis dar ao Sagreira porque não se entendem...
– Já cá tinha a notícia de que vocês andam todos a ferro e fogo.
– Todos? não senhor; é só o meu marido e o velho Sagreira, com o qual os próprios filhos andam às bulhas. Eu cá por mim estou bem com todos, e a Emília, a mulher do Luís que está no Convento, é grande amiga minha.
– Sim? quanto estimo. Desse modo quando eu lá estiver tu poderás conversar comigo as vezes que quiseres...
– Talvez – atalhou ela –, mas deixe-me ir embora que se faz tarde.

Os meus beijos de despedida foram de fogo, mas ficou-me a impressão de que aqueles com que ela correspondia não eram menos ardentes...

Antes de sair pediu para voltar ao quarto de cama, e pôs-se diante do espelho a arranjar o lenço e os cabelos; depois ficou-se quieta e como que pasmada perante a sua própria imagem; por fim atirou-lhe beijos, ao passo que me dizia:

– Há tanto tempo que me não via num espelho como este... É que eu realmente sou bonita, não é verdade?...

Esta inesperada aventura deixou-me como que assombrado e incapaz de desviar dela o pensamento, fosse qual fosse o assunto que lhe solicitasse a atenção.

Minha mulher, que durante o almoço não conseguira tirar-me da modorra em que caíra (mal respondia por monossílabos às suas insistentes perguntas), aconselhou-me a que chamasse o médico: eu parecia sonâmbulo e devia estar seriamente doente.

Mas o caso é que se doença havia era de contentamento, de exultação; no meu espírito persistia a confusão entre as duas Júlias: a virgem tão almejada dos meus tempos de rapaz (deslumbrante fruto em que não conseguira meter o dente) e a mulher perfeita de que gozara sem resistências as delícias, e que era apenas a outra desabrochada e amadurecida.

Para explicar convenientemente este fenómeno, seria necessário narrar o que haviam sido aqueles amores baldados, as horas de luxúria insatisfeita, os riscos de ser surpreendido e trucidado. Um acontecimento capital da minha vida ficara em suspenso, e de repente realizara-se integralmente sem peias nem estorvos.

Agora o que importava era dar-lhe a digna e merecida continuação, mas para isso tornava-se indispensável estudar in loco as disposições de todos os fatores adversos ou favoráveis, e foram de verdadeira febre os três ou quatro dias que antecederam a minha ida aos Pegos Verdes.

Os meus aposentos no Convento compunham-se de três quartos, cozinha, e casa de jantar, esta bastante vasta e com janela deitando para a horta. Tanto a cozinha como os quartos eram antigas celas dos frades e abriam para o claustro, o qual tinha uma única entrada e estava tupido de laranjeiras e nespereiras de proporções colossais. A habitação dos quinteiros compreendia o antigo refeitório, celeiros, ramada, cavalariça e mais divisões utilizadas na exploração agrícola; com entrada independente, comunicava, no entanto, com o claustro, por uma porta interior que só servia quando eu lá estava.

No mesmo domingo em que a Júlia ou, melhor, a Marta veio ao escritório, avisei o Sagreira da minha próxima visita, para que a nora procedesse à limpeza e arranjos indispensáveis (era a primeira vez que eu lá ia dormir depois da saída de Elisiário) mas sem indicar dia certo, e quando lá cheguei fiquei muito agradavelmente surpreendido com a ordem e asseio em que encontrei tudo; porém o que mais me impressionou foi a abundância e arte da ornamentação floral, composta de molhos de murta e rosmaninho, em púcaros de barro, e grandes copos de vidro cheios de rosas, jacintos e narcisos. Nem eu sabia que naquela estação (íamos a meio do inverno) houvesse ali tanta flor, e festejei a Emília pelo seu bom gosto, agradecendo ao mesmo tempo os cuidados que lhe merecera. Mas ela atalhou com vivacidade:

– Tudo isto é obra da menina Marta. Logo que o meu sogro deu notícia da vinda de Vossa Senhoria ela ofereceu-se para me ajudar, e foi ela quem colheu e arranjou as flores, e todas as manhãs vem ver se alguma está murcha para mudar. Ainda hoje ela cá esteve...
– Então vocês são amigas?
– Muito... Ela é uma rapariga muito fina e também muito dada; já me parece que somos como irmãs.

Bravo!, pensei eu com os meus botões. Isto prova, pelo menos, que a linda Júlia consente em continuar a deliciosa aventura começada no domingo. E não cabia em mim de alegre e satisfeito.

Ao meio-dia o José Cravo veio cumprimentar-me. Ele fazia grande diferença da primeira vez que o vira. Agora, tostado pelo Sol, com o fato usado, e os largos calções de coiro próprios dos cabreiros, parecia mais forte, mais viril.

Oferece os seus serviços, protestando novamente da gratidão que me deve; declara-se contente com a sua situação embora apreensivo com uns casos de morrinha aparecidos nos cordeiros, e termina oferecendo também os serviços da Marta, para tudo quanto fosse necessário:

– Ela já cá veio ajudar a menina Emília no arranjo da casa e está às ordens de Vossa Excelência...
– Já o sabia e agradeço, sobretudo se ela quiser tratar da comida, em que a Emília não é muito forte...
– Ora essa. Considere-a Vossa Excelência como criada sua.

Quando eu acabava de dormir a sesta senti passos na cozinha, e como não tivesse ouvido ranger a porta de entrada ao claustro, cujo ruído era forte e característico, julguei ser a Emília que houvesse passado pela porta interior, e sem me levantar chamei por ela para saber o que me daria para a ceia.

– Não é a Emília, sou eu... – responde-me a Marta, irrompendo pelo quarto dentro e vindo sentar-se-me à beira da cama.

Mais linda do que nunca, tal qual a minha Júlia do Porto...

Novo acesso de loucura amorosa, mas agora em comunhão perfeita – até à medula – com a minha adorada cúmplice.

De repente começou a tutear-me, como se fôssemos velhos conhecidos, ou como se realmente nos tivéssemos já encontrado nalguma das casas de perdição por onde ela passara.

O tratamento de tu, na sua boca, era um encanto novo, mas depressa notei que o usava somente quando eu a chamava Júlia; se dizia Marta ela acudia logo com um «vossa excelência».

Observei-lho, mas ela não sabia explicar por que o fazia, e entre risos e beijos segredava-me:

– Eu sei lá porque é... Quando me chamas Júlia o coração pula-me de contente. Dá-me como que uma certeza de que já te vira, que já te conhecera... de que já te amara, a ti, e nunca amei mais ninguém...
– E o José Cravo?... – interrompi eu, estúpida e brutalmente.
Vieram-lhe as lágrimas aos olhos.
– Eu gosto dele apesar de me bater, e tenho pena de o atraiçoar. Mas gosto de outra maneira... e não me assusta o castigo que me espera e há de ser grande..., à sua sorte ninguém escapa...

Com beijos lhe fechei a boca, pedindo-lhe perdão de ter falado no amante.

O caso, porém, é que eu não conseguia destrinçar as duas Júlias, e por ter amado a outra julgava-me com direito a ser amado agora por esta.

Curiosa confusão! E não seria esta Júlia pelo menos filha da outra? Nas suas reminiscências aparecia a madrinha, uma virago a quem chamavam a Siflóide, que tinha casa de hóspedes, especialmente frequentada por estudantes, e cujos sinais correspondiam aos da minha hospedeira do Porto.

Esses três dias nos Pegos Verdes foram de completa embriaguez. Perfeita liberdade nos encontros que, evidentemente, a Emília favorecia; confiança absoluta por parte do José Cravo; tempo divino, permitindo os longos passeios solitários e sem destino, por montes e vales, a que tão afeiçoado sou. Até o António Sagreira parecia entrado nos eixos; pelo menos abriu as tréguas com o seu competidor, evitando discussões e conflitos.

A estiagem fora grande durante o ano inteiro, diminuindo muitíssimo a água da nora. O Sagreira propunha que a refundassem, explorando ao mesmo tempo uma fonte que lhe ficava perto, e que se fizessem na horta vários trabalhos de aterragem e canalização, no que prontamente consenti, sob condição de que tudo começaria daí a quinze dias, que era quando eu poderia vir passar uma semana aos Pegos Verdes, para dirigir e encaminhar aqueles trabalhos.

Com Marta combinei até nos mínimos detalhes a forma como nos havíamos de encontrar no escritório, de modo a não inspirar desconfiança à minha mulher, nem ao José Cravo.
Bastante rogada contou-me o que se passara na herdade da Vila do Bispo, aclarando o sentido das palavras com que o José Cravo habitualmente se referia ao Ponciano: «causador da minha desgraça».

O Ponciano assim que a vira começou a namorá-la, mas tanto nojo lhe causava que um dia ela cuspiu-lhe na cara. Ele então induziu um rapaz, que também era pastor e morava na herdade, a que a seduzisse, prometendo-lhe dinheiro se o conseguisse. O rapaz, apesar das suas repulsas e ameaças de o denunciar ao amante, fez-se atrevido, e ao fim de pouco tempo gabou-se ao Ponciano «de a ter já apanhado», o que este foi imediatamente contar ao José Cravo. Daí a chumbada nas pousadeiras que, ajuntava ela, mais do que ninguém o Ponciano merecia, mas, para não complicar a situação, nunca dera parte ao amante dos seus requebros. – E nós agora – acrescentava ela – precisamos ter muita conta connosco, não vá ele desconfiar de alguma coisa e armar-nos alguma ratoeira... Sabe o que ele me disse da primeira vez que lhe vim arranjar a ceia? «Toma cuidado com as brincadeiras do patrão, e se algum dia me vires carregar a espingarda com balas, podes ter a certeza de que uma é para ti e a outra para ele». E o José Cravo é homem para o fazer e muito mais...

Pois seria, mas isso em nada perturbava a minha felicidade, o meu embevecimento. Aquela aventura era para mim como que a realização de um sonho delicioso, e não encontrava nas recordações do passado mulher comparável à Júlia que nunca possuíra e de que fruía agora a acabada imagem. Tão satisfeito e alegre andava que toda a gente notava a diferença; até a minha mulher (que então estava grávida e sempre macambúzia) me repetia a miúdo: – Mas o que tens tu que pareces outro: remoçaste de dez anos... Isso é de me veres aflita...

Os trabalhos da horta, que propositadamente ampliei, deram-me pretexto a voltar a miúdo aos Pegos Verdes, sem que motivasse reparo, ou suspeita da verdadeira razão que lá me levava. A minha presença ali concorria também para acalmar as rivalidades e invejas que a situação do José Cravo suscitava; a paz, aparentemente, tornou-se perfeita, tendo acabado de todo os melindres e queixas de que a princípio me chegava, por assim dizer, notícia diária.

A disposição topográfica do pequeno largo (para o qual convergiam cinco ruas) onde estava o meu escritório, fazia-o de muita passagem, porque dava saída à vila e abria caminho para a praia; as horas escolhidas para os nossos encontros, e a habilidade com que a Marta se disfarçava, tapando a boca com um lenço, como se tivesse dor de dentes, ou cobrindo a cabeça com o xale, à moda do campo, tudo parecia garantir a impunidade aos nossos arriscados amores.

Porém, ao fim de algum tempo, como sucede sempre em casos tais, foram diminuindo as cautelas, e a rapariga permitia-se liberdades que podiam ser funestas. Por exemplo: uma das coisas que mais a encantavam (e a mim também) era contemplar-se nua, ao espelho móvel do quarto de cama, com risco de sobrevir alguém a que eu não pudesse negar entrada. Pois sucedeu uma vez que por um instante a minha mulher a não apanha em trajes de Eva.

Acabava de se vestir quando batem à porta da rua de um modo que se não prestava a dúvidas: era pessoa muito familiar. A Marta mal teve tempo de se escamugir pela porta do pátio. Era a minha mulher, que nunca ali ia, mas por um capricho próprio do estado em que se achava, coitada, resolvera vir em pessoa informar-se da nevralgia que eu simulara ao acordar para me pôr mais cedo ao fresco...

Em frente ao escritório ficava a farmácia de um velho boticário, que já nada vendia e só aos domingos abria o estabelecimento; mais de uma vez me parecera entrever, pela porta envidraçada que dava para o largo, o vulto do Baltasar Ponciano, e isso levara-me a aconselhar mais prudência à Júlia, porém, com grande espanto meu ela replicou-me vivamente:

– Ah!, sim? Vem espreitar? Pois inda bem, é para que saiba. Acaba por estoirar de inveja...
Eu já não agoirava nada bom de tanta imprudência, mas o amor, o desejo que ela me inspirava cegava-me e os encontros multiplicavam-se sem as necessárias precauções.

Íamos no fim de abril; minha mulher tivera o seu bom sucesso (um mocetão forte e vermelho como um bezerro) mas ficara muito fraca, em consequência da grande hemorragia que sobreviera ao parto; não se levantava, porém acalmara-se-lhe a inquietação pechosa em que andava nos últimos tempos, e toda ela parecia ressumar condescendência e bondade. Foi ela própria que me lembrou a festa do 1.º de Maio, aconselhando-me a que a fosse passar aos Pegos Verdes, no que eu concordei de bom grado.

A festa caía numa terça-feira. No domingo que a precedeu eu esperava a Júlia no escritório, vigiando o largo por uma fresta da janela do quarto de cama, quando divisei distintamente o Ponciano entrando na botica, e depois o seu vulto postado à porta envidraçada. Apressei-me a pôr na minha janela um grande vaso vermelho, sinal convencionado para indicar à Júlia que devia entrar pela porta do pátio. Ela pouco tardou mas vinha tão despreocupada que só deu pelo sinal muito perto de casa, e hesitou ainda, antes de tomar a outra rua.

– O que sucedeu? – perguntou-me a rir, apenas entrou. Expliquei.
– Pois o pior foi que ali na venda da outra rua estava o Isidro, o pastor da Vila do Bispo que levou a chumbada...
– E viu-te entrar?
– Com certeza.
– E não tens medo?
– Eu já não tenho medo de nada... E agora sempre te quero dizer que ando desconfiada de que o José Cravo não se importa com isto e pensa em deixar-me...
– Sim? Isso é que era oiro sobre azul...
Participei-lhe a minha ida aos Pegos Verdes na terça-feira e recomendei-lhe que arranjasse uma maia[1] bonita, com muitas flores.
– Olá; e eu, que pela primeira vez assisto a essa função, hei de mostrar que ninguém me leva a palma nos enfeites da boneca.

Quando o Sagreira chegou apressei-me a falar-lhe na festa projetada, que desejava fosse de estrondo; dei-lhe dinheiro bastante para as filhós, ordem para matar dois carneiros gordos e meia dúzia de galinhas, e chamei o feitor da adega para lhe dizer que nesse mesmo dia mandasse para os Pegos Verdes meia pipa de vinho tinto e dois garrafões de vinho doce. O Sagreira parecia assombrado.

– Ora ainda bem – observou. – Que grande regabofe para a rapaziada, que bem o merece..., e nada é demais para festejar a vinda do morgado com que a divina Providência mimoseou Vossa Senhoria...

Era com efeito o primeiro filho do sexo masculino que me aparecia (até ali só tivera fêmeas), porém que longe eu estava de pensar no caso, a que logo me agarrei.

– Sim senhor, sim senhor... – acudi pressuroso, e voltando-me para o feitor: – Em vez de meia pipa de vinho mande uma pipa cheia.

Combinou-se que a maia teria as dimensões do corpo humano, e seria armada na eira, onde logo ao começo da tarde havia sombra e o piso era excelente para se dançar à vontade.

Ficou o Sagreira encarregado de fazer os convites e de arranjar dois tocadores de harmónica dos melhores que houvesse nos povos da vizinhança.

Tudo isto em honra da minha Júlia, que tão contente se mostrara com a ideia da festa, e toda a minha pena era de a não poder celebrar em salas de luxo, com banquetes de iguarias raras, regadas a champanhe...

Na terça-feira pus-me a caminho antes do nascer do Sol («fazes bem em ir cedo para evitar o calor» – observou a minha afetuosa esposa), e às 9 horas já eu estava na eira, examinando a maia e as ornamentações que me deixaram bastante desapontado.

«Já vejo que a Júlia para festas rústicas tem pouco jeito...» pensei.

No Convento ia enorme azáfama, e não eram menos de doze as raparigas que trabalhavam na cozinha; mas debalde os meus olhos ávidos procuravam entre elas o corpo airoso e o rosto lindo da minha Júlia, o que não passou despercebido à Emília, a qual tão depressa eu cheguei ao meu quarto correu a participar-me que ela viera da vila doente, e não podia assistir à festa.

– Talvez lá para a tarde ela apareça, mas será por pouco tempo, de fugida... – e com ar misterioso: – Não é só doença o que ela tem; o José Cravo zangou-se com ela e deveras; até me parece que lhe bateu e proibiu-lhe de assistir à festa...

Pela volta do meio-dia apresentou-se-me o José Cravo, dizendo que vinha cumprir a sua obrigação: receber ordens. Pouco se demorou, e nem uma só vez, durante a nossa conversa, consegui fixar-lhe os olhos, que se desviavam tão depressa percebiam que os meus os procuravam.

Fácil será imaginar a perturbação que tudo isto me causou. Pretextando enxaqueca não assisti ao jantar, conservando-me em casa febril e ansioso, à espera de que a Júlia viesse, e ao mesmo tempo rogando aos meus deuses que se não arriscasse ao perigo que a desobediência ao amante neste caso lhe oferecia. Do seu monte ao Convento eram pelo menos vinte minutos de caminho (e que caminho: de cabras!) e seria impossível que ele não desse pela sua ausência.

Mas ela sempre veio, ao cair da tarde e já quando eu a não esperava. Que aspeto o seu! Branca de cera; olheiras e lábios roxos; as mãos geladas, e porventura mais encantadora do que nunca.

O amante não lhe batera, mas no domingo à noite, à volta da Figueira, onde fora cobrar a importância de uns carneiros que lá vendera, entrou em casa calado, atirou-se vestido em cima da cama e pôs-se a chorar. Ela, que estava preparando a ceia, ouviu-lhe os soluços e, com verdadeiro dó, pois nunca o tinha visto chorar acercou-se para o amimar. Mas ele repeliu-a com tal força que a fez cair no chão, e sentando-se à beira da cama principiou a insultá-la. Depois contou que o Isidro da Vila do Bispo (o da chumbada) andara por todas as vendas do povo a dizer que ela ia dar comigo ao escritório, demorando-se horas quando eu estava sozinho, e nunca saindo pela mesma porta por onde entrava, como quem queria escapar à curiosidade da vizinhança, a qual, toda, sabia já quem ela era e zombava das suas artimanhas. Se eu vinha por alguns dias ao Convento era ela que de mim tratava e comigo dormia. E, asseverava o Isidro, o José Cravo era sabedor e consentidor de tudo isto. Era esta parte que mais lhe doía, e quando repetia isso vinham-lhe ataques de ira que o sufocavam e ficava quase sem sentidos.

Em suma ele proibira-a de voltar ao Convento, e ainda nessa manhã lhe repetira que se ela se atrevesse a vir enquanto eu cá estivesse, a matava.

Durante o dia mais de uma vez dependurara e limpara a espingarda que o Ponciano, com ser como é tão miserável e vilão ruim, nunca mais reclamou...

E por mais que ela procurasse não conseguira encontrar as cargas com bala, que ele habitualmente conservava na arca da roupa metidas na algibeira do jaquetão de ver a Deus. Apesar de tudo ela sempre viera ao Convento, só para me pedir de joelhos que me fosse já embora...

Adverti-lhe que seria a maior das vergonhas se fugisse e isso nunca eu faria.

Ela então, lavada em lágrimas e cobrindo-me de beijos, despediu-se soluçando:

– Se o vir carregar a espingarda com balas, ainda que seja de rastos cá te venho dizer.

Eu não me lembro de ter, em toda a minha vida, horas de tão cruciante angústia como as que se seguiram a esta cena. A tensão nervosa era tal que o corpo todo me doía. E afligia-me, sobretudo, a impossibilidade de tomar qualquer resolução definitiva. Raptá-la? A atonia cerebral era completa: na cabeça, mais vazia do que uma esfera de vidro, perpassava em letras de fogo a mesma frase obcecante: tudo menos perdê-la. E com tudo isto a impertinente alegria da festa que não acabava: a sanfoninada música das harmónicas; os gritos das raparigas extenuadas que os lapuzes arrastavam para a dança; o falatório aldrabado dos velhos avinhados...

Tudo menos perdê-la!...

Já cerrara a noite quando aquela gente se resolveu a dar fim à função, apeando a maia do mastro a que a haviam ligado de manhã; e em procissão ma trouxeram. Recebi-os à janela da casa de jantar que tinha, da parte de fora, um banco de alvenaria onde assentaram a boneca. Depois dos vivas e agradecimentos do estilo lá me deixaram só, ou, melhor, na companhia da maia, em cuja cabeça puseram o meu chapéu, e que parecia estar descansando das fadigas do dia, mas a máscara voltada para dentro sem me perder de vista. O parapeito da janela chegava-lhe aos ombros, de modo que a luz do candeeiro lhe iluminava a cabeça. Naquele mesmo banco, e naquela mesma posição, costumava eu levar horas, dormitando ou lendo, e a Emília, quando me veio trazer a ceia, ainda se iludiu supondo que a maia era eu.

Ainda tentou falar a respeito da Marta, mas eu despedi-a, recomendando-lhe que se fosse deitar: no dia seguinte conversaríamos.

Sentei-me à mesa, mas sem tocar em prato algum, e abri um livro com tão expressa vontade de ler, para me distrair (para sair de mim mesmo) que realmente consegui fazê-lo, e ainda hoje recordo as páginas que li, com frases que sou capaz de repetir. Porém fez-se-me no pensamento um tão completo desdobramento, que a leitura atenta o não impedia de conjeturar o que sucederia a Júlia, e o que me sucederia a mim mesmo, se persistisse a loucura que me atacara. Não que eu acreditasse em mortes, nem em tiros...

E justamente neste ponto do meu monólogo ouvi um tiro. – Quem diabo se entreterá a estas horas a dar tiros? – observei aborrecido mas sem por sombras ligar o que ouvira com o caso da Júlia. E continuei lendo e considerando: – Raptá-la? E depois? Mas o José Cravo não seria homem que por dinheiro entrasse nalguma combinação amigável?... – esta ideia como que me aliviou. – Ele não há de ser tão mau como o pintam...

Outro tiro; este então já muito próximo do Convento, e ao mesmo tempo a cabeça da maia mexia, e a bilha de água fresca, sobre o aparador, tinia e esguichava água pelo bojo. A bala atravessara a cabeça da boneca e a bilha...

Ao ruído do tiro acudiram logo os quinteiros e mais pessoal que trabalhava no Convento, além da outra gente que por habitar longe ali ficara a passar a noite, e ao verem o furo na cabeça da maia declararam unanimemente:

– Isto foi obra do José Cravo; ele julgou que a maia era o patrão...

Espantosa, horrível, essa noite que me pareceu infindável, da qual me não posso lembrar sem pavor. E não enlouqueci. Porém duvido que haja nervos que resistam a duas noites como essa. Foi nos seus transes que me apareceram nas fontes as primeiras cãs – e numerosas.

Ainda não rompera a madrugada, e já os moços do curral vinham anunciar que o José Cravo desaparecera e a Marta jazia morta num pequeno terreiro a meio caminho do Convento.

Faltou-me o ânimo para a ir ver, mas segundo me contou a Emília o cadáver parecia sorrir. Provavelmente ao ver José Cravo carregar a espingarda com bala, levantara-se da cama, e sem mais roupa do que a camisa e um xale sobre os ombros, deitara a correr para me vir prevenir. Mas o amante seguira-a e logo que a alcançou matou-a com um tiro no coração, como se verificou pela autópsia. A morte devia ter sido instantânea...

O lugar onde encontraram o cadáver passou a ser conhecido pelo «Sítio da mulher morta»; e o curioso é que, poucos dias depois, todo o terreiro estava coberto desses pequenos lírios roxos a que no Algarve chamam flores de maio, e que era raro ver naquela região. Todos os anos o fenómeno se repete.

Do José Cravo, até hoje, não houve mais novas nem mandados.

Bougie, maio, 1934.


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