agosto 2016 - BIOGRAFIAS ERÓTICAS
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A literatura erótica

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A literatura erótica
De que falamos quando falamos de erotismo? 

A palavra gera muitas confusões e a primeira está na tentativa de fazer do erotismo um sinónimo de sexualidade. 

No entanto, de há algum tempo para cá, essa confusão parece ter atingido os media, as redes sociais, a literatura, a opinião pública em geral. 

De tal forma que um livro como As 50 Sombras de Grey vende milhões sob o epíteto de “erótico” como se não fosse apenas uma versão alargada dos muito estimáveis romances cor-de-rosa da Harlequim Books (em Portugal comercializados pela editora Abril sob os nomes de Bianca, Júlia, Sabrina), os Corin Tellado lidos nos anos 60 e 70. 

Pior, é como se atrás dele não existissem milénios de literatura Erótica (assim mesmo, com “E” maiúsculo), do bíblico Cântico dos Cânticos aos poemas de Sapho, da Arte de Amar de Ovídio aos livros de Sade, de Sacher-Masoch a Henry Miller onde o erotismo se manifestava na sexualidade mas não só. 


Manifestava-se na linguagem, nos elementos, na moral, nas verdadeiras transgressões que se faziam aos códigos sociais e religiosos de cada tempo.

Regra número 1: “não há erotismo sem transgressão”, como explica George Bataille nesse ensaio fundamental chamado, justamente, O Erotismo (ed. Antígona).


Brigitte Bardot no filme Desprezo (1963) de Jean-Luc Godard, baseado na novela erótica de Alberto Morávia

Regra número 2: o erotismo, porque ligado à transgressão, está ligado à morte e ao sagrado. Eros não era o deus da sexualidade era o deus das ligações e o seu oposto Tanatos, deus da morte e da desligação. Ora sem Eros e Tanatos não há erotismo.


Maria Schneider e Marlon Brando no filme Ultimo Tango em Paris de Bernardo Bertolucci, uma balada de sexo e morte

Regra 3: o erotismo não se resume aos uso dos órgão sexuais. Erotismo é uma forma de ligação impulsionada por um desejo. O que impulsiona o erotismo é a busca de algo que não se tem, o Outro. Logo, o principal veículo do erotismo é a linguagem, verbal e não verbal. Quem tem uma linguagem pobre vai ter sempre um erotismo pobre. 

Esta relação fundamental entre a palavra e o erotismo está magistralmente tratada por Pascal Quignard no livro Vida Secreta (ed. Notícias) a precisar urgentemente de ser reeditado por cá.

Quem vai mesmo mais longe, quando um novo conservadorismo triunfa em toda a linha, é Manuel S. Fonseca da editora Guerra&Paz que, depois de ter publicado, num só volume, o bíblico Cântico dos Cânticos e o livro licencioso Manual de Civilidade para Meninas de Pierre-Félix Louÿs, volta agora ao escritor francês libertino, do final do século XIX, início do século XX, para iniciar uma coleção de livros eróticos.

Três filhas de sua Mãe, de 1910, foi traduzido pelo poeta João Moita, e narra as aventuras de um jovem estudante com as quatro mulheres que lhe aparecem como vizinhas, precisamente uma mãe e as três filhas, cada uma com a sua idade, a sua experiência ou inexperiência, os seus desejos. 

Os livros de Louÿs foram considerados muito subversivos e uma dessas “subversões” era a importância que ele dava à sexualidade feminina, como celebrava o desejo sexual das mulheres (e o seu direito a ele), mas também as perversões, a capacidade transgressora, impúdica e libertina das mulheres. 

A Mulher e o Fantoche
 é a sua obra mais aclamada e teve adaptações ao cinema de Josef von Sternberg (com Marlene Dietrich), de Luis Buñuel e de Julien Duvivier. Foi publicada há uns anos pelo Círculo de Leitores.

Três Filhas de Sua Mãe, ou as mulheres ao poder, neste livro de Pierre Louÿs, que abre a coleção Eróticos Guerra&Paz

Eróticos Guerra & Paz terá continuidade apenas em 2018 e o responsável editorial, em entrevista ao Observador, prefere não anunciar ainda os títulos seguintes mas afirma que o seu objetivo “é lançar um conjunto de livros clássicos e contemporâneos, de prosa, poesia e ensaio onde o tema seja o erotismo mas não sejam necessariamente aquilo que o tempo e a história da literatura definem como erótico. 

Não sou um editor convencional e não quero publicar coisas convencionais”. E cita o poema de Herberto Helder, Amor em Visita, como “uma das coisas mais eróticamente grandiosas da literatura portuguesa das últimas décadas”:

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.(…)

Questionamos Manuel S. Fonseca, que além de editor da Guerra & Paz é cronista de cinema no jornal Expresso, sobre se, no tempo das novas tecnologias, quando há uma liberdade sexual impensável há apenas 40 anos, quando basta um click para aceder a conteúdos eróticos e pornográficos na internet, onde a publicidade banalizou os corpos e a sensualidade, se ainda é possível o erotismo?

Acredito que vai continuar a haver pessoas a escreverem e a filmarem o erotismo, ainda que de outra forma. Talvez precisemos de afastar essa ideia de que erotismo tem que ter sexo. Ora o erotismo é também a expressão de um tempo se este tempo é diferente talvez tenhamos que procurar literatura contemporânea erótica que não obedeça ao erotismo como nós nos habituamos a pensá-lo. Penso que agora que as imagens parecem esgotadas talvez os grandes livros eróticos do futuro sejam aqueles onde o principal veiculo de transgressão será a linguagem e não as relações sexuais”.

Grande literatura erótica, para quem só se contenta com muito:

“Cântico dos Cânticos”
“Filosofia de Alcova”, Marquês de Sade
“Novelas Eróticas”, Manuel Teixeira Gomes
“Henry & June”, Anaïs Nin
“A Vida Sexual de Catherine M.”, Catherine Millet
“O Erotismo”, Georges Bataille
“Teoria King Kong”, Virginie Despentes
“Amor em Visita”, Herberto Helder
“Antologia de Poesia Erótica de Satírica”, org. Natália Correia

Seja porque as regras morais das sociedades contemporâneas eliminaram muitos interditos em relação à sexualidade e às ligações entre os corpos e o mundo em redor, seja porque as tecnologias criaram formas de proximidade que já não precisam de presença física, seja porque o novo milénio trouxe um novo puritanismo como reação ao excesso de imagens hiper-sexualizadas que circulam no espaço público e os milennial parecem ter substituído o desejo de encontros sexuais por um novo romantismo, a verdade é que a literatura erótica e o cinema erótico que foram pujantes nos anos 60 e 70 e foram declinando nos anos 80 para quase desaparecerem no novo milénio ou surgirem numa versão comercial kitsch que envergonharia a grande dama do romance cor-de-rosa, Barbara Cartland.

Os homens, que foram os principais produtores de literatura erótica, parecem ter-se recolhido num sofrimento melancólico devido à ascensão social feminina (veja-se o livro de contos de Frederico Pedreira, Um Bárbaro em Casa, ed. Língua Morta que, apesar das inúmeras fragilidades, nos dá um curioso retrato deste mal estar que os homens das novas gerações desenvolveram em relação ao corpo e à sexualidade feminina que sentem como inalcançável). 

Por outro lado, as mulheres parecem ter trocado a sua emancipação social, sexual, financeira, por um definitivo desejo cristão de amor, casamento e uma casa com piscina. 

Ou será que, como questiona o filósofo italiano Emmanuele Coccia, a nossa busca do prazer está hoje quase totalmente dirigida aos objectos de consumo? Será que o erotismo do século XXI só se pode encontrar na nova relação erótica com a comida (e veja-se a abundante literatura que se produz sobre o tema e a ascensão mediática dos Chefs tornados alvo do mais puro fascínio erótico), com marcas de ténis ou gadgets tecnológicos.

Nove Semanas e Meia um dos filmes eróticos que marcaram o imaginário dos anos 80, como Kim Bassinger e Mickey Rourke a darem um uso muito criativo ao frigorífico

Em Portugal, que já produziu muitos e bons escritores e poetas eróticos, vemos que este tema está hoje reduzido (ainda) aos poetas da Geração 61, como Maria Teresa Horta ou Casimiro de Brito, que pouco dizem a quem cresceu nos anos 80 e viu filmes como Nove Semanas e Meia de Adrian Lyne, Lua de Mel, Lua de Fel, de Polansky, Henry & June de Philip Kaufman, quem leu Al Berto, Luís Miguel Nava ou Herberto Helder, quem não idealizou a revolução sexual mas efectivamente a viveu. 

Onde estão os novos escritores e poetas eróticos em Portugal? A Douda Correria acaba de fazer sair Caim e Lilith, um diálogo erotizante entre duas figuras bíblicas, escrito pela poeta Sandra Andrade, que pode marcar o renascimento do erotismo na nova lírica portuguesa.

Eis que um leito acolheu, cúmplice, dois amantes;
diante das portas fechadas da alcova, ò Musa, sustém o passo!
Espontaneamente, sem a tua ajuda, palavras mil hão-de ser ditas
e não se quedará inerte no leito a mão esquerda;
hão-de os dedos inventar que fazer naqueles sitios
em que, às escondidas, mergulha as suas setas o Amor…”
[Ovídio, livro II, Arte de Amar]

É certo que na nossa tradição os poetas têm feito mais pelo erotismo do que os romancistas: da lírica trovadoresca a Camões — o que é o episódio da Ilha do Amor (e não dos Amores) senão um grande momento de erotismo?– de Bocage a Florbela Espanca, Natália Correia ou, mais recentemente a Fátima Maldonado, Helder Macedo no seu poema longo Romance ou Nuno Júdice na novela O Complexo de Sagitário.

O romance erótico tem sido pouco cultivado entre nós com algumas exceções, como o erotismo relutante de Eça de Queiroz, em especial no Primo Basílio, as Novelas Eróticas de Manuel Teixeira Gomes, ou O Amor é Fodido de Miguel Esteves Cardoso.

Depois há toda uma escola de romancistas cuja capacidade de trabalhar o erotismo redunda normalmente em desgraça ou apenas em mau gosto como os casos famosos de José Rodrigues dos Santos, Miguel Sousa Tavares ou Hans Nurlufts (pseudónimo literário de João Soares).

Os Sonhadores, 2003, o tabu do incesto em versão light por Bernardo Bertolucci

Como nota Pascal Quignard em
 Vida Secreta, a boca e os olhos são os mais importantes órgãos do erotismo. Os olhos por onde entram as imagens que vão alimentar o nosso imaginário e a boca, que recebe o alimento e a linguagem (curiosamente o latim mostra como estas ligações arcaicas mama (seio e mãe) e ama (a que cuida/amor). 

Ambas as palavras com vários “a” e “o” redondos como a boca do bebé que recebe a comida e como os primeiros sons que a sua garganta emite antes de dominar a verbalização das palavras.

Não obstante a escassa produção de romances eróticos em Portugal, há por todo o mundo obras primas que construiram o imaginário sobre o erotismo. Desde o oriental Kamasutra, a outros menos explícitos mas não menos transgressores, como A Arte de Amar, de Ovídio, pai de toda a literatura erótica Ocidental, a obras como Lolita de Nabokov, A Morte em Veneza de Thomas Mann, Pantaleão e as Visitadoras de Mário Vargas Llosa, A Casa dos Budas Ditosos de João Ubaldo Ribeiro, Axilas & outras histórias Indecorosas de Rubem Fonseca, As Sobrinhas da Viúva do Coronel , de Guy de Maupassant, A História de O de Pauline Réage, pseudónimo de Anne Desclos… 

Não há, portanto, desculpa para nos termos tornado analfabetos eróticos. E deixamos sugestões, do romance à biografia, do ensaio à poesia.


"CÂNTICO DOS CÂNTICOS"




Cântico dos Cânticos é um momento de apoteose poética, onde o sagrado e o profano convivem na mesma exaltação do encontro erótico entre os corpos. Obra que se tornou símbolo maior do erotismo sexual, religioso e amoroso, onde se evoca a nostalgia do momento em que os corpos não estavam para sempre divididos e entregues a uma solidão ontológica inultrapassável. Onde se evoca o segredo, a busca, a ausência e onde o erotismo é, antes de tudo, a tentativa de encontrar o absoluto no cerne de cada ser.

"FILOSOFIA DE ALCOVA"

A Filosofia de Alcova, do Marquês de Sade, uma edição da Antígona

Filosofia de Alcova, publicado em 1795, não é “p’ra meninos”. Que é como quem diz, não é para quem torce o nariz às pulsões mais violentas, agónicas e mortais que fazem parte do humano. Não é certamente para quem considera, como Rosseau, que o Homem nasce bom e é corrompido pela sociedade. A Filosofia de Alcova, mais do que um livro erótico sobre a educação perversa que recebe a jovem e pura Eugénia, é um livro político que influenciou profundamente autores como Freud, Maurice Blanchot, Pierre Klossowsky. Sobre ele escreveu o poeta Paul Éluard: “Sade quis devolver ao homem civilizado a força dos seus instintos primitivos, quis desembaraçar a imaginação amorosa dos seus próprios objetos. Julgou que daí, e só daí, nasceria a verdadeira igualdade(…)”


"NOVELAS ERÓTICAS"


As Novelas Eróticas que o ex- presidente da República Manuel Teixeira Gomes escreveu depois de se exilar na Argélia. Edição Relógio d’ Água
Uma das coisas mais eróticas destas novelas de Teixeira Gomes é a Língua Portuguesa. A mestria com que ele usa as palavras, o ritmo, faz confluir o mundo interior e exterior, como funde o explícito e o implícito, o manifesto e o latente. Nestas histórias curtas, publicadas pela primeira vez em 1935, encontramos a celebração da beleza e juventude dos corpos masculinos e femininos mas também dos elementos, do cosmos e do caos. O erotismo, e Teixeira Gomes compreendeu-o tão bem como Bataille está intimamente ligado à morte, às festas pagãs, à violência.


"HENRY-JUNE"
“Henry & June” retrata a relação da escritora francesa Anaïs Nin com o escritor Henry Miller e a sua mulher June
Este livro é apenas uma parte dos diários eróticos da escritora francesa Anaïs Nin e retrata o envolvimento amoroso da escritora com Henry Miller, outro autor fundamental da literatura erótica, e com a mulher deste, June. Henry & June, que deu origem ao filme homónimo é maravilhosamente escrito, colocando o enfoque na busca feminina do prazer que se faz na ultrapassagem de interditos vários entre eles a homossexualidade.


“A Vida Sexual de Catherine M.”



Em 2001, o entusiasmo de Eduardo Prado Coelho convenceu-nos a ler a biografia sexual da famosa curadora e crítica de arte francesa no livro A Vida Sexual de Catherine M. A obra não é grande coisa, convenhamos, mas serviu para uma geração de jovens provincianos descobrirem como uma mulher pode viver de forma verdadeiramente libertina e sobretudo dos prazeres do sexo em grupo. Foi um bestseller em vários países.


“O Erotismo”, Georges Bataille

“O Erotismo”, de George Bataille, escritor, filosofo, antropólogo francês. (Edição ilustrada na Antígona)

Este ensaio de George Bataille, escritor e filósofo francês, devia ser obrigatório para qualquer pessoa que pense escrever — e não somente um livro, um conto ou um poema erótico, mas quem quer pensar a cultura, a arte, a política. O erotismo é uma viagem histórica, social, antropológica e filosófica às origens do erotismo nas primeiras comuniddaes humanas, na sua relação com o aparecimento no homem de uma consciência simbólica, uma consciência do sagrado, do trabalho, da guerra, etc. Tributário dos estudos de Marcel Mauss mostra como o erotismo está sempre ligado aos interditos e à sua transgressão.


“Teoria King Kong”, Virginie Despentes

“Teoria King Kong” é um ensaio polémico sobre a sexualidade (Editora: Orfeu Negro)
Embora seja um livro que em grande parte revisita as teorias de Bataille, este ensaio da polémica cineasta francesa Virginie Despentes, saiu recentemente em Portugal na Orfeu Negro, é já um marco nos estudos de género, e apesar da má fama da sua autora não é um livro siderado pela histeria feminista. Virginie aborda a sexualidade feminina e masculina e a construção de interditos e preconceitos que impossibilitam que homens e mulheres tenham uma vivência livre do seu erotismo. Um dos pontos de partida do livro está nas vivências tidas pela autora durante os anos em que trabalhou como prostituta.


“Amor em Visita”, Herberto Helder

“O Amor em Visita”, primeiro livro de Herberto Helder pode ser lido no seu “Ou o Poema Contínuo”
É provável que a tribo cada vez maior de “donos” de Herberto Helder fique chocada por esta poesia ser considerada erótica. Mas certamente só quem tem uma visão exígua do erotismo e da poesia do autor pode recusar-lhe esta dimensão. O corpo, o órgão sexual feminino, o sangue menstrual e a sua relação com os astros, as constelações, os ritmos da natureza formam uma grande tessitura erótica, no sentido de Eros, como deus tutelar das ligações cósmicas. Se no Amor em Visita esse fulgor erótico é claro e pujante, noutros poemas da sua obra encontramos de novo esta expressão profunda de vida e morte, da religiosidade através da sexualidade. É a própria linguagem que transgride os seus códigos e o corpo da língua portuguesa é levado aos limites.


“Antologia de Poesia Erótica de Satírica”, org. Natália Correia

Antologia organizada pela poeta Natália Correia e que a levou ao banco dos réus. (Uma edição Antígona/Frenesi)
Esta antologia que atravessa toda a história literária portuguesa é também um marco na resistência e luta contra o fascismo. Publicada pela primeira vez em 1966, levou Nátalia Correia e o seu editor Ribeiro de Mello, da Afrodite, a um processo em tribunal que resultaria na sua condenação. Começando no século XIII vai até ao século XX e engloba autores inesperados como Antéro de Quental ou Fernando Pessoa. Esta antologia tem ainda um cultíssimo prefácio de Natália Correia precisamente sobre o erotismo.

(Excerto de um artigo do observador neste link https://observador.pt/2017/08/27/a-literatura-erotica-ainda-e-possivel-no-seculo-xxi/ que poderão ler mais desenvolvido.




O poder erótico em Cartas do Padre António Vieira e Cristina

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O poder erótico em Cartas do Padre António Vieira e Cristina

Retirado da Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014, sobre livro de Gloria Kaiser com levantamento histórico sobre o relacionamento erótico do Padre António Vieira e Cristina, rainha da Suécia, com excertos de cartas absolutamente fantásticos.

"Nós sabemos que por meio das palavras podemos superar
tudo; com palavras nós vencemos qualquer escuridão, pois
nada é mais forte e poderoso que a palavra."

Padre António Vieira 




O PODER ERÓTICO

Diário e cartas de Cristina Vasa, rainha da Suécia,
e do padre Antonio Vieira
Gloria Kaiser

O meu livro trata do padre António Vieira e do ano de 1689. Nessa época António Vieira tinha 81 anos de idade e vivia em Salvador, Bahia, Brasil, na Quinta do Tanque. 

Estava trabalhando nos seus famosos sermões e vivia recordando os cinco anos que passou em Roma (1669-1675), assim como a sua amizade com Cristina da Suécia. 

Uma amizade que uniu dois seres iluminados da história. A essa amizade devemos vasta correspondência, que contém algum grau de colorido erótico — o quanto, isto fica por conta da interpretação do leitor.

Ao começar a pesquisar sobre António Vieira, eu iniciei um diálogo com ele. E trata-se de um diálogo sem fim, já que toda uma vida não é suficiente para ler, interpretar, decodificar e, quem sabe, entender toda a sua obra. 

"O sitio da mulher morta"

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"O sitio da mulher morta"

Novelas Eróticas
Manuel Teixeira-Gomes






O SÍTIO DA MULHER MORTA


Já totalmente impossibilitados de trabalhar, os Elisiários, meus velhos caseiros dos Pegos Verdes, tinham abandonado a propriedade recolhendo-se a um casebre que possuíam na povoação vizinha, a Figueira. Mas como eu lhes desse uma pensão, que embora insignificante os ajudava a viver, mostravam-se-me gratos, e iam amiúde ao Convento (era assim designada a propriedade, desde tempos imemoriais, por encerrar o único convento que existia léguas em redor), não para fazer as suas devoções, mas para observar o que lá se passava e dar-me conta do que espiolhavam se alguma vez adregava encontrarem-se comigo. Tinham sido eles que me indicaram para sucessor o António Sagreira, dono de duas courelas minhas estremenhas, rendeiro de várias várzeas que me ficavam fora de mão, e habitual e principal empreiteiro do serviço das belgas que transformam os matos em terras de semear.


A indicação surpreendera-me bastante, porque havia entre eles uma antiga rixa que não admitia tréguas, porém depressa compreendi as razões que a motivaram: o Sagreira era implicativo e pechoso, e tinha três filhos valentões que lhe reforçavam a argumentação, mesmo quando sofística; assim os meus velhos caseiros se vingavam dos vizinhos com quem haviam andado às bilhardas, e ao mesmo tempo impingiam-me um sucessor que pelas suas malas-artes me faria lamentar a ausência dos reformados.

"? (interrogação)"

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Novelas Eróticas
Manuel Teixeira-Gomes


Manuel Teixeira-Gomes


Novelas Eróticas


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O meu quarto na hospedaria Fra Giaccomo, em Esmirna, era uma gaiola de vidro suspensa sobre o mar, e isso concorreu muito para que eu aí me demorasse mais do que projetara. Não que o panorama fosse risonho; bem pelo contrário. 



A desarmónica imensidade do golfo, a disposição das esmagadoras montanhas vizinhas, a cidade que não brilha, com o seu casario escuro apinhado nas encostas, nas alturas recortadas de ameias, restos de arruinadas fortificações antigas, todo este conjunto formava um quadro melancólico.

E a pretensiosa fachada italiana da cidade (existirá ela ainda?) que levantaram sobre o cais, à semelhança de Messina, era mais um engano que a ninguém alegrava nem contentava.

"Cordélia"

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"Cordélia"

Novelas Eróticas
Manuel Teixeira-Gomes


Manuel Teixeira-Gomes


Novelas Eróticas



CORDÉLIA

Mais n'est-tu pas toi-même un
jet d'eau qui s'irise
Et qui vers l'infini s'élance et
puis se brise?...

PHILÉAS LEBESGUE

As minhas relações com gente da Catalunha datam da infância, graças a uns negociantes de cortiça, de S. Feliú de Guixols que se estabeleceram na minha terra e de que ainda hoje lá existe descendência. Gente honrada, trabalhadora e bastante culta, mas sobretudo orgulhosa das virtudes da sua raça e belezas da sua província, do seu trato me veio o conhecimento dos seus poetas, e a curiosidade de lhe visitar a pátria e ver-lhe os monumentos.

Numerosas foram, no decorrer da vida, as minhas excursões pela Catalunha, dando-me ensejo de assistir ao extraordinário desenvolvimento da sua capital a que me afeiçoei e onde repetidas vezes fui embarcar para Itália.

Em uma dessas ocasiões, esperando vapor que não aparecia, a minha demora ali foi relativamente grande, permitindo-me penetrar um pouco mais na compreensão do complicado problema catalão, social, religioso e político, ao passo que vagarosamente, e quase sempre a pé, ia explorando os curiosíssimos arredores da grande cidade.

Ao contrário do que me tem sucedido noutros sítios, dos quais a primeira impressão sobrepuja a quantas me produziram visitas subsequentes, ficou-me desses dias, bem vivo na memória, um quadro completo, que esmorece ou apaga a lembrança de todos os outros, com a agitação tumultuosa do operariado ativo, o antagonismo das raças e das crenças, a propaganda sindicalista e a clerical; a expansão fabril e o fanatismo diligente dos jesuítas e frades, que iam enchendo os arrabaldes de verdadeiros Escuriais, onde a burguesia aprendia a detestar a liberdade... alheia. Isto a par do variadíssimo pitoresco da paisagem, da prestigiosa Sé, das velhas e modernas igrejas, e do porto cujo movimento poucos igualam no Mediterrâneo.

Mas a pintura desse quadro (diversão a que devo renunciar por grande que seja a tentação de a fazer) não tem oportunidade neste relato, ao qual desejo dar o caráter de simplicidade máxima, em linhas sem atavios e traçadas rapidamente.

Flanando uma bela manhã pelo cais, assisto à chegada de um grande vapor, todo pintado de preto, em cuja popa tremulava a bandeira italiana. Tomo informações: chamava-se Arno, vinha do Brasil, e seguia nessa tarde para Génova.

Corro à agência a comprar bilhete. – Passagens em primeira classe não há, porque o vapor só tem segundas (além das terceiras), porém muito melhores do que as primeiras de outros vapores – diz-me o empregado, mas num tom falho de convicção, mole, e sem mostrar o mínimo interesse pelo caso. Resolvo-me, apesar de tudo.

Às três horas embarquei e fico estarrecido com o espetáculo que o tombadilho do Arno me oferecia. Por todos os lados se viam grupos de criaturas esquálidas e andrajosas, em volta de fogareiros onde assavam sardinhas; grupos semelhantes aos que se topam nas vielas imundas de algumas das nossas aldeias marítimas, como Alvor...

O criado de bordo, besuntão e descortês, mal me atende para declarar que nenhum camarote me fora reservado: – Se quiser espere pelo capitão, que foi a terra e não deve tardar – concluiu.

Pelo que me informa um marujo da tripulação, o barco era exclusivamente destinado a emigrantes, e a gente que se encontrava na tolda consistia no refugo das Puïlhas e das Sicílias, vomitado pelos Brasis e Uruguais.

Decido voltar para terra, mas quando acenava a um bote para que viesse buscar-me, descubro outro bote, já perto do vapor, com duas elegantes senhoras sentadas trazendo molhos de flores nos regaços. Detenho-me a observar para onde iriam. Vem para o Arno! Atracam à escada.

O mesmo marujo das informações anteriores afirma que são passageiras, para as quais há camarote reservado. Uma delas levantou-se. E alta, grácil, serpentina. Acompanham-nas dois homens ainda novos e bem postos. E toda esta gente para o Arno? Então eu também posso ir nele.

Os homens são o médico de bordo, rapaz de trinta anos e um primo de vinte, tipos venezianos, loiros, quase imberbes, com ares – e o aprumo – de S. Jorges que já venceram dragões.

A senhora alta, que primeiro se levantou, é mulher dum oficial de marinha e regressa a Itália, após longo cruzeiro em navio de vela para fortalecer os pulmões; a outra que se chama Cordélia – rapariga muito nova, de cabelos adamascados, pescoço delgado, cintura fina, quadris largos e rebeldes, harmonizando-se na curva das coxas –– é dançarina e trabalhou todo o inverno como corifea do corpo de baile do teatro Lyceu. Ambas piemontesas e naturais da mesma terra, aonde agora vão em curta visita.

O capitão chega em seguida e designa-me um camarote de oficial, excelente. Mas que figura, esse capitão! A assimetria natural do rosto, aumentada por um enorme inchaço da face direita, dá-lhe aspeto monstruoso, e os olhos, cuja luz desfalecia, apagando-se por vezes, eram como dois pequenos calhaus húmidos, tanchados em sanguinolentas cristas de galo.

Também pouco nos secou com a sua presença; sumiu-se para só reaparecer quando chegámos a Génova.

As senhoras e eu somos os únicos passageiros, e além de nós três só o médico e o primo assistem às refeições.

Quando nos sentámos à mesa para jantar já nos conhecíamos, conversávamos, e ríamos como se fôssemos todos amigos de anos. A bailarina fica ao meu lado e eu não me farto de a remirar, encantado sobretudo com o seu ar infantil e bondoso, e não sei o quê de carinhoso na curva do seio que me enternecia. Nos seus olhos garços a luz refletia-se em cambiantes.

Cordélia! este nome shakespeariano vai-lhe a matar.

A mulher do oficial de marinha, senhora de mais de quarenta anos, simpática, de aspeto padecente mas resignado, conserva traços de grande beleza; é amável, faz o possível para nos pôr à vontade e recolhe cedo à cama.

Jogamos o sete e mezzo todo o serão, a bailarina sempre a meu lado: as nossas mãos tocam-se, os olhares empeçam-se; eu quero perscrutar-lhes a ternura e ela não se esquiva; um intensíssimo desejo me assalta, secando-me a garganta e a boca... O prestígio que desde moço pequeno atribuí às bailarinas ateia o amor que começa; durmo pouco e mal, sempre com a visão do que seria o seu corpo nu, a perpassar-me na mente...

O dia seguinte foi todo de jogos e brincadeiras, não faltando o inevitável sete e mezzo. Dois beijos dados a furto, logo de manhã, abrem caminho à intimidade. Desconfio que a oficiala não gosta da minha corte a Cordélia, ou pelo menos que a faça tão descabelada na sua presença, mas para a tarde já nos isolamos.

O mar está mais doce do que seda, porém o ar esfria e eu abafo-a debaixo da minha capa; as nossas mãos prendem-se; a sua voz tem o timbre velado, longínquo e casto, mas pressinto que se lhe tocasse no seio desmaiava...

Combinámos um encontro, a data certa, em Turim, onde ela passará duas semanas com a família que a criou e a sua velha ama de leite, que estima ainda mais do que a própria mãe.

Cai a noite; os nossos lábios unem-se, e eu pasmo de que se possam separar, de que se não soldem...

Devemos chegar de manhã cedo a Génova, e ofereço-me para a ir acordar ao camarote. Aceita. Naturalmente não consigo dormir. Às três horas bato-lhe à porta muito de mansinho. – Entre – murmura a sua voz quase apagada. Empurro a porta que range levemente, o que me sobressalta e agonia; porém nenhum rumor se ouve. 

Os meus olhos, acostumados à escuridão, distinguem um braço nu cuja mão acena pela abertura da cortina do leito inferior. Aproximo-me de rastos e beijo a mão, o braço. A mão puxa por mim. Abro a cortina e beijo-a toda: o seio, o ventre, as coxas... Sonho? Não; loucura, transporte, êxtase... Os braços frágeis, os seios pequeninos e túmidos, as coxas volumosas e marmóreas... Mas a companheira acorda, ou julga oportuno dar-se por acordada. – Cordélia, quem está aí? – exclama. Silêncio; a mão que por mim puxou acaricia-me demoradamente o rosto e logo assinala a necessidade de me ir embora.

Desembarcámos juntos e acompanho-as à gare onde nos despedimos. – Até breve, em Turim... – segreda-me ela.

Sob a impressão daquele corpo airoso e leve, Génova parece-me outra. Nem reparo na frialdade rígida dos seus imensos palácios de granito. Corro à igreja da Annunziata onde passo quase o dia todo, deliciando-me com a alegria do seu faustuosíssimo barroco, a que tão intimamente se casam as pinturas... e o estado da minha alma.

Ao dia seguinte ponho-me a caminho de Turim, passando por Milão, Brescia, Verona, Vicenza e Padova. Aqui encontro, no café Pedroechi, o médico de bordo, o primo, e a irmã deste, que é noiva daquele e cuja fisionomia nunca mais esqueci: testa de cinco pontas, olhos ridentes, lábios vermelhos como gomos de laranja de sangue. Jantámos juntos, visitámos a feira e assistimos ao espetáculo do circo, onde descubro uma voltigeuse que muito faz lembrar Cordélia, o que mais me exacerba o desejo, a ânsia de a rever. Será isso depois de amanhã, sem falta; conforme as indicações precisas que me deu, vou chegar a Turim três dias depois de ela lá estar e procurá-la-ei às cinco horas da tarde, como expressamente recomendou.

Apeei-me em Turim já perto da meia-noite; dormi regaladamente, despertando tarde com o coração e alma em pleno azul. Mas o dia foi horrorosamente longo. Vou ao museu que é encantador mas não me distrai; subo ao posto alpino cujo panorama tão-pouco me entretém; a cidade, sombria e regular como tábua de xadrez, parece que torna as horas mais compridas...

Os jornais da terra anunciam uma série de catástrofes, onde figura um pavoroso incêndio; que diabo me importa a mim que o mundo arda! Porém o mais escandaloso foi a indiferença – quase irritação – com que li no Petit Journal a notícia do suicídio do meu amigo Marechal, o elegante oficial belga, companheiro de tantos meses seguidos de alegre vida mundana: – Podia muito bem ter-se matado noutra ocasião – foi a oração fúnebre que lhe rezei...

Alfim aproximam-se as cinco horas da tarde. Tomo um trem, leio, soletrando, na carteira o complicado endereço, e tenho uma inconsciente surpresa, de que só depois me lembrei, ao ver a facilidade com que o cocheiro o entendeu, exclamando: – Ah! já sei – e partindo sem mais explicações...

Quando entrávamos numa larga e extensa rua, onde o movimento de carros e de gente era intenso, o cocheiro voltou-se para mim e indicando um alto prédio bradou: – Ali está a casa do incêndio...

Apeei-me meio tonto, mas ainda sem perceber claramente que ligação haveria entre a casa incendiada e o endereço que buscava; pronto porém me esclareci: o número era o mesmo.

Entrei já tomado de pânico, e quando estava pedindo informações a alguém que parecia representar a autoridade, uma velha lavada em lágrimas, que nos escutava de um banco próximo, levantou-se e encarando-me balbucia entre soluços:

– É o senhor... é o senhor aquele que a minha desgraçadinha esperava...

Era a ama de Cordélia.

Soube então que a bailarina fora uma das vítimas da catástrofe, e do seu lindo corpo torrescado só escapara, intacto, o braço direito, aquele mesmo que pendia nu, à beira da cama, quando eu entrei no camarote para a acordar...

Djidjelli, fevereiro, 1934.