Parece um projecto interessante este de revelar uma parte da cultura portuguesa e galega apagada pelo purismo dos costumes. Fica o prefácio, quem quiser mais que compre o livro.
PREFÁCIO
Os cancioneiros medievais
galego-portugueses desenvolveram-se entre os séculos XII e XIV, na área
geográfica das regiões de Portugal, Galiza, Leão, e Castela, na atual Península
Ibérica. Embora cada reino ou região de então falasse a sua própria língua, o galaico
português era a língua culta, utilizada para a escrita de poesia e de
composições musicadas, pelos poetas trovadores dessas regiões, como por exemplo
o rei de Castela e de Leão, Afonso X o
Sábio.
No entanto, a maioria destas cantigas são portuguesas e galegas, e embora haja um bom número de cantigas da
Galiza, há que salientar que a Galiza
ainda não tinha o seu território geograficamente definido, e portanto
encontrava-se ainda muito ligada a Portugal, não apenas linguisticamente, mas
também histórica e culturalmente.
O textos destes
cancioneiros são composições em verso, de carácter profano, e na sua maioria são
letras de cantigas, que foram musicadas e cantadas nos saraus das cortes régias
e dos salões dos grandes senhores feudais, para entretenimento e divertimento.
São cerca de 1680 composições poéticas, e constituem uma obra de um conjunto
muito vasto e diversificado de autores, escrita por trovadores de origem nobre,
alguns deles dedicando-se exclusivamente ao cargo de trovadores, e outros deles
ocupando também outros cargos, como sucedia por exemplo com os cavaleiros, os
príncipes, ministros da corte, e até reis, como D. Afonso X, de Castela, e o
seu neto D. Dinis, de Portugal. Outras destas composições poéticas foram
escritas por jograis (autores oriundos da burguesia e das classes populares).
Estes poemas foram compostos e passados a
escrito pelos próprios autores, ou por copistas, cujos manuscritos hoje se conservam
exatamente no original. Esses manuscritos foram coligidos em três cancioneiros:
Cancioneiro da Biblioteca da Ajuda (BA), Cancioneiro da Biblioteca Nacional
(BN), e Cancioneiro da Biblioteca Vaticana (BV), e alguns desses poemas existem
em mais do que um dos Cancioneiros. Foram todos compostos e escritos por
homens, e dividem-se em cantigas de amigo (canto em voz feminina, dedicado a um
destinatário masculino), cantigas de amor (canto em voz masculina, dedicado a
um destinatário feminino), e cantigas de escárnio e maldizer (dedicadas a
vários destinatários).
As cantigas de
escárnio e maldizer constituem mais de um quarto do total das cantigas que
chegaram até nós, têm uma temática muito
ampla e variada, e relatam os costumes da sociedade da sua época, mas os seus
temas são muito atuais, conforme se poderá constatar no presente livro. As
cantigas de escárnio tem uma alusão a determinado assunto ou a determinada
pessoa, são uma referência indireta e velada, com subtilezas e equívocos,
trocadilhos e ambiguidades, e portanto, têm um duplo sentido. As cantigas de
maldizer não têm um duplo sentido, são diretas e ostensivas, e por vezes
utilizam mesmo linguagem calão ou palavrões.
Os temas das cantigas de
escárnio e maldizer são os seguintes: adultério, agoiros, astrologia,
superstições, ambição, ganância, doenças várias e seus tratamentos, aspeto
físico feminino e masculino, defeitos físicos,
maneira de vestir, avareza, pelintrice, bajulação-interesse,
duplicidade, mentira, estupidez, bebida,
caça, casamentos, mancebia, casamentos forçados, cobardia, exercícios
militares, comportamentos políticos, lutas de poder, corrupção, pagamentos,
falta de escrúpulos, heranças, partilhas, impostos, incompetência profissional,
jogos, mau caráter, maus jantares, maus tratos domésticos, raptos, paródias ao
amor cortês, heresias, blasfémias, entrada forçada para o convento, recusa de
hospedagem, romarias, roubo, traição, velhice, vida religiosa, e comportamentos
sexuais.
Nas cantigas sobre os comportamentos sexuais, temos o relato de :
comportamento sexual em geral, adultério, amantes, mancebia, poligamia, sexo e
dinheiro, prostituição, incesto, comportamento sexual dos religiosos (padres,
frades, e feiras), gravidez indesejada, doenças venéreas, impotência, homossexualidade masculina e feminina. O alvo
destas cantigas são quaisquer indivíduos, o que revela que todos tinham esses
comportamentos: reis, nobres, plebeus, clero, juízes, conselheiros de reis,
literatos, poetas, cavaleiros, soldados, comerciantes, agricultores, etc.
Os manuscritos destas
composições poéticas permaneceram durante muitos séculos ignorados em
bibliotecas, e só foram descobertos no século XIX. O professor e investigador
português Rodrigues Lapa deu-os a conhecer, transcrevendo os manuscritos (sem
os traduzir), e portanto em língua galaico-portuguesa, mas ficaram conhecidos
apenas entre os eruditos. Desde então a poesia galaico-portuguesa tem sido
conhecida do grande público praticamente só através das cantigas de amigo e
das cantigas de amor, e pouco ou nada se
tem conhecido das cantigas satíricas, principalmente dos poemas eróticos,
apesar de muitos autores das cantigas de amigo e de amor também terem escrito
poemas satíricos, entre eles os eróticos.
O facto de terem sido publicados em
língua arcaica, e o facto de terem circulado sobretudo entre os estudiosos, fez
com que tivessem passado despercebidos.
Nos últimos anos têm-se publicado as cantigas de amigo e as cantigas de amor,
em língua original ou traduzidas, mas tem-se continuado a ocultar, ou tem-se
revelado pouco, as cantigas satíricas, principalmente os textos eróticos, pois
considera-se que atentavam contra o decoro e os conceitos morais vigentes, e
sendo assim, foram sendo ocultados do grande público, e conhecidos apenas pelos
estudiosos especialistas em história e literatura medieval (e nem todos).
Depois de terem sido descobertas estas cantigas, vários dos autores de
antologias dos cancioneiros medievais, nos seus prefácios referiram essas
cantigas como tendo valor histórico,
social linguístico, literário e cultural, mas ficaram-se por aí, não as
publicando, nem sequer na língua original.
Atualmente as cantigas satíricas já
estão publicadas integralmente, mas por um lado estão incluídas entre as muitas
outras cantigas (de amigo, e de amor), e por outro lado estão publicadas sem
tradução. Ora de entre as muitas cantigas satíricas, procurámos as de carater
erótico, que reunimos e traduzimos neste livro, constituindo um total de 123, e
portanto, apesar de já estarem publicadas, é a primeira vez que são reunidas e
publicadas como tema específico (poemas eróticos), e por outro lado é a
primeira que estes textos são traduzidos e publicados em Português.
Nesta tradução confrontámo-nos com
acrescidas dificuldades: são de textos
da Idade Média; são textos de uma outra língua, não propriamente a portuguesa
(o galaico português); são textos onde existem metáforas e palavras com duplo
sentido; são textos cuja compreensão requer por vezes o contexto de factos que
desconhecemos. Temos também as dificuldades inerentes à rima e à métrica.
Procurámos ser fiéis à rima, mantendo a mesma sequência e o mesmo tipo de
rimas, procurando palavras sinónimas.
Procurámos também manter a mesma métrica,
e portanto quando os versos têm 7 sílabas, mantemos as 7 sílabas, e quando
outros versos têm 10 sílabas, mantemos as 10 sílabas. Há outros poemas, que têm
métrica irregular, e também isso mantivemos. No entanto, nas cantigas com 10
sílabas no texto original, por vezes há versos com menos que 10 sílabas, pois
trata-se de textos para cantigas, e nem sempre os trovadores tiveram a
preocupação do rigor quanto ao exato número de sílabas em cada uma das
estrofes.
Por vezes também não pudemos manter o mesmo número de sílabas, isto
é, há alguns casos em que, embora o verso tenha originalmente 10 sílabas, a
nossa tradução em português moderno resultou em versos com 11 sílabas, assim
como há alguns casos em que os versos originais têm 9 sílabas, e a tradução em
português moderno resultou em versos com 10 sílabas. Geralmente mantivemos o
mesmo número de sílabas, embora nem sempre seguindo a regra da acentuação.
Assim,
por exemplo, um verso de 10 sílabas deve ter uma vogal aberta na sexta sílaba,
mas por vezes isso não foi possível, para mantermos a ideia original do
trovador (pondo uma palavra que não tem uma vogal aberta na sexta sílaba).
Entre a manutenção da ideia do verso (do seu conteúdo), da rima, e da métrica,
mantemos a mesma rima, mas por vezes
sacrificámos a métrica, para ser possível manter a ideia, ou a rima.
Por outro lado, por vezes não fomos
exatamente fiéis à ideia (ao conteúdo), perdeu-se alguma coisa do que o autor
quis realmente dizer, devido à nossa
preocupação de manter a mesma rima e a
mesma métrica, ao buscarmos palavras ou ideias semelhantes, mas que não querem
dizer exactamente a mesma coisa, mas também há que salientar que uma tradução de
um texto literário é sempre uma interpretação, principalmente tratando-se de
poesia, e ainda mais quando se trata de textos arcaicos, e que além de arcaicos
recorrem por vezes a um linguagem metafórica e cheia de equívocos.
Em todo o
caso, entre a métrica, a rima, e o conteúdo do verso, embora na generalidade
desta tradução tivéssemos procurado manter a fidelidade a todas elas, em alguns
casos tivemos de optar, e por isso preferimos que o verso tivesse menos ou mais
sílabas do que o original, mas que fosse preservado, tanto quanto possível, o
conteúdo (a ideia) do poema. Para realizarmos esta tradução, além da
bibliografia utilizada e referida no final deste livro, utilizámos informações
importantes sobre o significado de algumas palavras, informações essas obtidas através do projeto Littera :“Cantigas Medievais
Galego-Portuguesas”, da Faculdade de Ciências Socias e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa, a quem agradecemos, e em especial à sua coordenadora, a
professora Graça Videira Lopes, pelos esclarecimentos que pessoalmente nos
prestou.
Além da subjetividade da
tradução, como é próprio de qualquer tradução, devido aos problemas
linguísticos, temos também a subjetividade da própria seleção dos poemas, pois
selecionámos os que consideramos que são eróticos.
De entre esta selecção, atendemos ao que os investigadores arrumaram dentro da
categoria de cantigas satíricas, em
que os investigadores as distinguem das cantigas de amor e das cantigas de
amigo, mas tendo em conta que procuramos os poemas eróticos, certamente que os
poemas eróticos não existem apenas nas cantigas satíricas, pois há cantigas de
amor, e cantigas de amigo, que também têm algum erotismo, e que portanto
algumas dessas cantigas também podem ser consideradas como poemas eróticos.
A sua
consideração como eróticos apresenta
dificuldades de compreensão, que resultam, antes de mais, do próprio conceito
de erotismo. Este conceito provém da palavra grega eros (“desejo amoroso”), designando
o amor e a sexualidade. Porém, o conceito de erotismo não aponta diretamente e apenas para o sexo, mas para o
que lhe está associado (por exemplo um prolongado beijo na boca), e para o que
suscita a atração e o desejo sexual através da imaginação (as fantasias, por
exemplo). A cultura e o importante papel que a
imaginação desempenhou em todas as épocas na elaboração de códigos eróticos,
conduziram à função especificamente criativa do erotismo, e ao carater
complexo, e de certo modo refinado, da
sua expressão enquanto veículo da sexualidade. Assim como a comunicação verbal transforma e recria a linguagem em
poesia, a comunicação verbal transforma e recria a sexualidade em
erotismo. O erotismo joga com a
imaginação e a criatividade, por esse
motivo a melhor forma de fazer erotismo é recorrer à literatura e à arte, e o
erotismo tem sido portanto uma fonte de inspiração constante nestas formas de
expressão. O erotismo está sobretudo presente na literatura e na arte, e
no caso da literatura um texto erótico é aquele que guia o leitor através de
palavras não apenas diretas, mas também, e sobretudo, de palavras criativas,
subtis, implícitas, e sugestivas, a propósito da sexualidade.
O conceito de erotismo remete para significados
diferentes, e geralmente ambíguos: depende dos grupos sociais, da época, do
contexto geográfico, da cultura, da mentalidade e da sensibilidade do
leitor, do próprio contexto dentro da
obra literária, da intenção do autor na obra, e da visão que se tem sobre o
autor. O que para um leitor pode ser considerado como texto erótico, para outro
leitor pode não ser : pode não ser bem erótico mas quase, pode ser erótico, ou
pode ser mais do que erótico (pode ser considerado obsceno). Dado que a
moralidade difere segundo a cultura e a época, determinadas obras literárias
outrora consideradas como obscenas, hoje são consideradas simplesmente como eróticas.
O erotismo é, no entanto, um
conceito muito abrangente, que permite integrar uma gama muito vasta e rica de
emoções, afetos, sensações, ideias e vivências. Tudo o que contribui para
fomentar a imaginação sobre o amor e o desejo sexual, pode ser considerado como
erótico. Através da exploração do imaginário, pode-se descodificar as
erotizações manifestas e latentes. Um certo erotismo pode ser expresso também
através de olhares, gestos, enfim, da linguagem verbal e não verbal, da
linguagem corporal e não corporal. O erotismo é portanto uma forma subtil e
criativa da sexualidade, um determinado
nível de abordagem, uma forma mais rica e complexa de a abordar.
Comparando a literatura
com a arte (por exemplo uma pintura ou uma escultura), a arte é mais explícita
e direta, mostra-se ao nosso olhar, por isso é mais fácil dizer se é ou não uma
pintura e uma escultura homoerótica. Ora, pretendendo-se encontrar erotismo
através dos conteúdos, existe maior dificuldade no caso da literatura. Vemos
uma cena de um filme, olhamos para uma pintura, ou uma escultura, e dizemos
mais facilmente se nelas há ou não erotismo.
Em contrapartida, a literatura tem
muitas formas, mais subtis, de
apresentar uma mensagem : jogos de linguagem, metáforas, entreditos e não
ditos, subentendidos, muitas formas de falar de um determinado assunto através
de diferentes palavras, de modo implícito, e prestando-se a ambiguidades, como
sucede em alguns dos poemas dos cancioneiros medievais galego-portugueses.
Assim, muitos autores, de entre os quais os trovadores medievais, elaboraram ao
nível simbólico uma espécie de mística do
desejo sexual, utilizado para tal certas técnicas de expressão (transposição,
sugestão…), que se por um lado enriqueceram a linguagem e tornaram mais
criativa a literatura, por outro lado deixam o leitor perante as diferentes possibilidades de interpretação.
Alguns textos dos
cancioneiros medievais galego-portugueses são bastante claros no que diz
respeito ao seu conteúdo, pois apresentam as palavras vulgares, e mesmo
obscenas, com que se denominam os órgãos sexuais : caralho, piça, cona, foder,
cu, etc. No entanto, muitas das palavras dos cancioneiros galaico-portugueses
têm, intencionalmente, diferentes possibilidades de interpretação, sendo uma
delas a erótica, pois há palavras com duplo sentido : ferir, dormir, meter,
jazer, cavar, fender, golpear, etc., sendo geralmente necessário o contexto, ou
o poema no seu todo, para se compreender melhor o seu significado.
Assim, por
exemplo cavalgar significa o ato da
penetração sexual, armas significam
os órgãos sexuais masculinos, furar,
significa penetrar, golpear, ou bater, significam atacar sexualmente
alguém, jogo e jogar, significam o coito, etc. Alguns termos ou metáforas eróticas
que para nós são ambíguas ou de difícil compreensão, não o seriam para o
público daquela época, pois faziam parte do contexto em que as pessoas viviam,
e o público tinha portanto a mesma chave de compreensão que o trovador tinha.
Por vezes o sentido era
erótico, mas não apenas erótico, pois o erotismo, nomeadamente quando se
utilizava a sátira em relação a determinadas pessoas, tinha outros objetivos.
Enquanto a sátira a uma prostituta não era mais do que isso, a sátira a uma
personagem política, ou a sátira a um clérigo, eram mais do que uma simples
ironia, pois tinham também como objetivo a crítica política, ou o anti
clericalismo, falando dos comportamentos sexuais
das pessoas visadas.
Assim se explicam, por exemplo , as ironias para com Dom
Fernão Dias, um homossexual satirizado por alguns trovadores, ao qual o rei Dom
Afonso X nomeou seu adeantado
(oficial de justiça), rei esse que devia ter muitos inimigos políticos, e
portanto o rei era criticado indiretamente através desta e de outras
personalidades satirizadas pelos trovadores.
Mas uma leitura atenta de
uma boa parte destas cantigas poderá
também constatar que as mesmas não radicam na defesa de qualquer moralidade ou
moralismo, mas que são sim uma mera brincadeira e divertimento. Algumas nem
sequer satíricas chegam a ser, e têm pouco de irónico. Mesmo algumas cantigas
aparentemente críticas de determinados comportamentos amorosos e sexuais
expressam um certo ciúme, e por outro lado, dá-se grande importância à
sexualidade, mesmo satirizando-a, pois por vezes, no caso do desdém, como se
costuma dizer, “quem desdenha quer comprar”.
A ironia, por vezes, é uma defesa
psicológica pelos sucessos de outros, ou uma defesa para se suportar a
incapacidade ou a impossibilidade de
chegar onde outros chegaram, ou ainda um disfarce social para esconder
determinados comportamentos (“olha para aquilo que eu digo e não para aquilo
que eu faço”). Algumas destas cantigas referem por exemplo a prática do
adultério, os amantes, e as amantes, mas isso reforça a ideia de que a
sexualidade é algo que está muito presente na vida das pessoas aqui retratadas.
Algumas destas cantigas ironizam com os desaires alcançados por algumas das
pessoas aqui retratadas, nas suas conquistas sexuais, mas isso não significa
propriamente uma crítica à sexualidade, mas sim uma ironia feita a essas
pessoas, devido ao facto de se saírem mal nas suas conquistas sexuais. Há casos
em que se ironiza o comportamento sexual, mas o facto de algumas das cantigas
ironizarem por exemplo o comportamento
sexual dos padres, dos frades e das freiras, também não significa propriamente
uma ironia para com a sexualidade, mas sim uma ironia para com o facto de serem
pessoas que fizeram o voto de castidade, mas que no entanto não o
cumpriam.
Ao contrário da imagem
idealizada que geralmente se tem sobre a
Idade Média, ao ser considerada como uma
época em que as pessoas só pensavam em assuntos religiosos, os cancioneiros
medievais galego portugueses, principalmente os poemas eróticos, destroem essa ideia, pois revelam que a Idade Média
também era bastante profana, muito erótica, e por vezes até obscena,
como se poderá constatar ao longo do presente livro,
que
confirma também a investigação de alguns historiadores, como por exemplo de
Fortunato de Almeida, na sua História da
Igreja em Portugal, em que este afirma que “eram frequentes as violações da
castidade por parte do clero, e as violações da fidelidade conjugal entre
homens e mulheres na Idade Média”.
Por outro lado, também ao
contrário da imagem idealizada sobre o amor cortês dos cancioneiros medievais,
“é preciso sublinhar o que ao longo do tempo foi escondido: a inspiração
idealista dos trovadores dos séculos XI, XII e XIII desdobra-se muitas vezes
numa inspiração que é nitidamente erótica e escatológica, como forma de
compensação do amor cortês propriamente dito”. O seguinte excerto de um poema escrito pelo
primeiro dos trovadores franceses, o conde Guillaume IX da Aquitânia, duque de
Poitiers, é um dos melhores exemplos:
“Companheiro, já conheci
tantas más conas,
Que não posso deixar de
fazer uma canção
E mesmo que me faça
sofrer
Não quero que se conheçam
os meus casos,
E só eu sei como os
compreendo :
Não gosto de conas bem
guardadas,
Nem de viveiros sem
peixes”.
Para terminar este
prefácio, façamos uma explicação sobre a organização do presente livro,
nomeadamente a sequência dos poemas. Os poemas poderia ser apresentado por
temas (adultério, sexo e dinheiro, comportamento sexual do clero, impotência, homossexualidade, etc.), mas
seria difícil, arrumar os poemas só por cada um destes temas, pois há vários
poemas que tratam não apenas de um deste temas, mas sim de dois, ou mais.
Poderíamos também colocar os poemas por sequência cronológica, isto é, desde
os anos mais antigos até aos mais
recentes, mas na maior parte dos casos é difícil saber o ano do nascimento e da
morte dos autores (sabe-se só o século, e mesmo assim nem de todos, pois alguns
são ou do século XII, ou do século XIII). Poderíamos também colocar pela ordem
geográfica dos autores, colocando os autores portugueses de um lado, os autores
galegos de outro, e os autores dos reinos de Castela e Leão de outro, mas por
um lado as fronteiras geográficas e culturais entre Portugal e Galiza ainda não
estavam bem definidas, e não eram muito acentuadas, e por outro lado
desconhece-se a nacionalidade de alguns autores.
Sendo assim, optámos por
colocar a sequência dos poemas por autores, sequência esta mais ou menos
aleatória, pois não demos preferência a nenhum autor, e os autores que aparecem
primeiro tanto podiam aparecer no início como no final do livro. Ao colocarmos
a sequência por autores, dividimos este livro por grupos de poemas,
colocando-os portanto em cada um dos
respetivos autores.
BIBLIOGRAFIA
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Lisboa, Ed. Livraria Clássica Editora, 1971.
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Editorial Galáxia, 1970.
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- VV. Dicionario de Galego, Ed. Real Academia
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- VV. Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Porto,
Ed. Porto Editora, 2010
- VV. Projeto Littera, Lisboa, Instituto de
Estudos Medievais, FCSH-UNL.
ÍNDICE
JOÃO GARCIA DE GUILHADE
- Elvira Lopes, muito mal
sabeis
- Elvira Lopes, aqui
noutro dia
- Martim Jogral, mas que
coisa
- Martim Jogral, ai a
Dona Maria
- Por Deus, Lourenço, mui
desaguisadas
- Nunca uma tão grande
ofensa vi
- Há um fulano a quem
quero grande mal
- Dona Ouroana, embora
com cavalo andeis
JOÃO SOARES COELHO
- Luzia Sanches, sentis
grande falha
- João Fernandes,
enquanto em nós houver
- Dom Estevão, porque não
agradeceis
- Maria do Grave, grave é
saber
- Bom casamento há para
Dom Gramilho
- Martim Alvelo
- Quem diz que Dom
Estevão não vê bem
AIRAS PERES VUITOROM
- Cá anda Fernão Dias,
como vistes
- Dom Fernando, vejo-vos
andar ledo
- Corriola, vós sois
adiantado
- Dom Bernaldo, porque
não percebeis
- Dom Estevão, vossa
disposição
PERO DA PONTE
- Eu digo mal, como homem
fodilhão
- Sobre Dom Fernão Dias
Estaturão
- Dom Tisso Peres,
pretendia hoje eu
- Noutro dia, em Carrião
- Eu, de Toledo, sempre
ouvi dizer
- Dom Bernaldo, vós
trazeis
- Maria Peres, a nossa
cruzada
- Dado que acautelar-vos
não sabeis
- Martim Cornos vi
queixar
- Dai-me Alvíssaras,
Pedro Agudo
- Os de Burgos são
coitados
- Quem à sua filha quer
dar
FERNANDO ESQUIO
- Há um frade que se diz
descaralhado
- Para vós Dona Abadessa
AFONSO X
- Há dias eu apalpei,
quando a vi
- João Rodrigues foi ver
à Balteira
- Domingas Eanes teve uma
luta
- Sobre o Deão de Cález
eu bem sei
MARTIM SOARES
- Nosso Senhor, como eu
ando coitado
- Uma donzela de perto
daqui
- Pero Rodrigues, da
vossa mulher
- Dado que não tenho de
Dona Elvira
AFONSO LOPES DE BAIÃO
- Ouvi dizer que Alvelo
era casado
DOM DINIS
- João Bolo está numa
pousada
GIL PERES CONDE
- Minha Senhora, por vós
morrerei
PEDRO ANES SOLAZ
- Ai não é a de Nogueira
ESTEVÃO DA GUARDA
- A mulher de Álvar
Rodrigues ficou
- Muito a todos aborrece
- Sobre o que eu quis,
que muito gostaria
- Álvaro Rodrigues exalta
o esforço
- Um cavaleiro disse-me,
frontal
- Donzela, se alguém
fizer referência
- Numa discussão como
nunca vi
PEDRO CONDE DE BARCELOS
- A natureza animal
- Um cavaleiro tinha
RUI QUEIMADO
- Vós, Dom Estevão, em
grande tensão
- Dom Marco, eu vejo muito se queixar
AIRAS VEAZ
- Comprar quero, Fernão
Furado, um mu
VASCO PERES PARDAL
- O engano que recebemos
AFONSO ANES DE COTOM
- Maria Mateu, quero
ir-me daquém
- Abadessa, ouvi dizer
- Eu bem procurei, Maria
Garcia
- Covilheira velha, se
vos fizesse
- Mesmo agora me vieram
dizer
JOÃO VELHO DE PEDROGÃES
- Muito aflito pedir que
me ajudasse
MARTIM
- De Martim Moia dizem
mal as gentes
JOÃO SERVANDO
- Dom Domingos Caorinha
PERO GARCIA DE AMBROA
- Maior Garcia está
ausentada
- Os besteiros da
Fronteira
- O que a Balteira agora
quer vingar
- Embora eu tenha feito
um meu cantar
- Pedro d’Armea, quando
compusestes
JOÃO VASQUES DE TALAVEIRA
- Maria Leve, onde se
confessava
- Quero contar o que eu
ouvi dizer
- Sempre que ver quiser,
um cavaleiro
RUI GOMES DE BRITEIROS
- João Fernandes quer ir
guerrear
MEM RODRIGUES DE
BRITEIROS
- Um sangrador de Leiria
PEDRO AMIGO DE SEVILHA
- Ai meus amigos, tão
desventurado
- Não há no mundo um homem
tão coitado
- Pero d’Ambroa, tal
senhora haveis
- Dom Estevão, sobre vós
ouvi dizer
- Pero Ordonhez, torpe e
desengonçado
- Maria Garcia vi pobre
este ano
RUI PAIS DE RIBELA
- Oh, meu senhor, se isso
vos aprouver
- Comendador, quando eu
me afastei
- A donzela de Biscaia
- Maria Genta, Maria
Genta da saia cintada
- Que má ventura me venha
JOÃO AIRAS DE SANTIAGO
- Dom Bento, homem duro
PERO GARCIA BURGALÊS
- Maria Negra, que
desventurada
- Maria Negra eu vi, num
outro dia
- Dona Maria Negra,
embelezada
- Dom Fernando, embora me
maldigais
- Fernando Escalho eu
ouvi cantar bem
- Fernando Escalho está
muito doente
- Sobre Fernão Dias muito
me apraz
- Eu fui pedir a cona a
uma mulher
FERNÃO VELHO
- Maria Peres bem se
confessou
AFONSO GOMES
- Martim Moia, que minha
alma se perca
PERO VIVIÃES
- Marinha, por folegares
- Vós que por Pero
Tinhoso perguntais, se bem quereis
- Uma donzela, coitado
VASCO GIL
- Pero Martins, ora por
caridade
GONÇALO ANES DO VINHAL
- Pero Fernandes, homem
de coragem
- Uma mulher ao serão
- Abadessa, Nosso Senhor
JOÃO SOARES SOMESSO
- A uma donzela eu quis
grande bem
FERNÃO SOARES DE
QUINHONES
- Lopo Anaia não se vá
PERO DE ARMEA
- Donzela, qualquer um
entenderia
JOÃO BAVECA
- Bernal Fendudo,
quero-vos dizer
- Dom Bernaldo, lamento,
pois trazeis
- Mari Garcia, sempre
ouvi dizer
- Estavam hoje duas
soldadeiras
MEM RODRIGUES TENOIRO
- Dom Estevão encontrei
noutro dia
ESTEVÃO FAIÃO
- Fernão Dias, fazem-vos
entender
AFONSO MENDES DE
BESTEIROS
- O arrais de Rui Garcia
FERNÃO PAIS DE
TAMALHANCOS
- Com vossa graça, senhor
- Quando eu passei por
Dormã
- Mal me faz agora el-rei
PERO MAFALDO
- Maria Peres eu ando
coitado
LOPO LIAS
- Se el-rei algo me
desse, eu partiria
- Agrada-me um caso
havido
[1]
Fortunato de Almeida, História da Igreja
em Portugal, Porto, Ed. Livraria Civilização Editora, 2000.
[2]
Jean-Jacques Pauvert, A literatura erótica, Lisboa, Ed. Teorema, 2001,
p. 73.
[3]
Idem, p. 73 (poema citado com base na obra de Pierre Bec, Burlesque et obscénité chez les
troubadours (“Burlesco e obscenidade nos trovadores”, Paris, Ed. Stock,
1984).