"? (interrogação)" - BIOGRAFIAS ERÓTICAS
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Novelas Eróticas
Manuel Teixeira-Gomes


Manuel Teixeira-Gomes


Novelas Eróticas


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O meu quarto na hospedaria Fra Giaccomo, em Esmirna, era uma gaiola de vidro suspensa sobre o mar, e isso concorreu muito para que eu aí me demorasse mais do que projetara. Não que o panorama fosse risonho; bem pelo contrário. 



A desarmónica imensidade do golfo, a disposição das esmagadoras montanhas vizinhas, a cidade que não brilha, com o seu casario escuro apinhado nas encostas, nas alturas recortadas de ameias, restos de arruinadas fortificações antigas, todo este conjunto formava um quadro melancólico.

E a pretensiosa fachada italiana da cidade (existirá ela ainda?) que levantaram sobre o cais, à semelhança de Messina, era mais um engano que a ninguém alegrava nem contentava.

Depois, a situação moral dos habitantes (domínio de dez mil turcos sobre trezentos mil italianos, gregos, arménios e judeus), os receios, os terrores mal disfarçados da população cristã, a qual dir-se-ia que julgava próxima e inevitável a chacina exterminadora com que os muçulmanos a ameaçavam, diariamente e sem rebuço, junto a uma profunda crise económica, alimentavam a atmosfera de tristeza que a paisagem, com os seus inúmeros ciprestes, por seu turno acentuava.

Porém o meu amor ao mar, e essa gaiola de vidro, onde eu pairava como se andasse embarcado, retinham-me (embora um pouco a meu pesar) a ponto de conservar o quarto de minha conta durante as várias e clássicas excursões, de que Esmirna é o centro obrigatório e das quais as célebres e importantíssimas ruínas de Éfeso constituem o principal objetivo.

Mas não devo esquecer, como nota aprazível, as aldeias na margem do golfo fronteira a Esmirna, onde amiúde ia espairecer; pontos de veraneio, desabitados na estação em que ali permaneci, mas recamados de jardins encantadores e bem tratados. Então floresciam as túlipas, os jacintos e os lírios, em longos canteiros ovais, como caudas paradas de fabulosos pavões.

Arranquei-me de Esmirna com dificuldade, aproveitando o paquete russo Tchikachoff, que por ali fez escala direito a Constantinopla, ponto extremo da minha viagem.

Um agigantado marujo, no alto da escada de bordo, recebe a bagagem dos passageiros, brincando; apanhava e distribuía malas e caixas de enormes dimensões como se fossem cartonagens de chocolates finos.

Por todos os lados, na tolda do imenso barco, a confusão e o movimento são intensos: há centenas de soldados russos que voltam da ilha de Creta (em cuja baía a esquadra do tzar permanece, pronta, dizem, para intervir no conflito turco-grego), e tantos ou mais peregrinos, da mesma nacionalidade, que regressam de Jerusalém.

O tipo dos peregrinos, com o cabelo comprido e a barba em leque, tem um corte de rigorosa uniformidade que surpreende.

Olhos cândidos na aparência, mas que se esquivam e cuja expressão é absolutamente incoercível.

O vapor levanta ferro lentamente e os soldados entoam um desses hinos corais de que os russos possuem o segredo, em harmoniosas massas de milagrosa disciplina; respondem-lhe os peregrinos em largos cantos, mais vagarosos e profundos, de acentuado caráter religioso.

Sobem todos os passageiros ao tombadilho, e à frente dum cortejo de fardas reluzentes adianta-se uma criatura de lenda, figura de Brunehilde, que julguei evocada dos Nibelungen (eu andava então saturado de wagnerismo), cuja imagem nunca mais se me desvaneceu da memória, tal qual a vi nessa tarde gloriosa.

Será demais dizer que os seus olhos brilhavam como estrelas? E o ritmo dos movimentos, a frescura da pele, a graça do riso! Sentia-se-lhe a carne firme escorregar debaixo da roupa, que antes lhe descobria do que lhe vendava as formas.

Tudo se adivinhava suavemente modelado mas livre. E o peito? sob a alvíssima seda da blusa os seios disparavam, como duas cidras, erguendo os bicos... Ela avança, à frente do cortejo de fardas doiradas, como que embalada nas harmonias do coro, tal uma imperatriz asiática, ou uma deusa.

Percorre assim uma boa parte do convés; todos lhe abrem caminho e seguem-na com olhares acesos em lascívia. Evidentemente o seu corpo exala eflúvios de amor; a sua presença é afrodisíaca e levanta nos corações revoadas de desejos.

Lentamente, assim como apareceu, após repetido circuito, desaparece, levando consigo todo o cortejo de fardas doiradas, ao som de um patético coral que já parece lamentar-lhe a ausência...

Na sala de jantar os oficiais sentam-se em volta de uma grande mesa oblonga, a cujo topo, a presidência, está a poltrona reservada para a formosa Brunehilde.

Faz-se esperar, e é de ver a repentina e concertada rapidez com que as fardas doiradas se erguem à sua chegada, as respeitosas cortesias com que a acolhem, e o gesto de soberana com que ela lhes ordena que se assentem.

Vem ricamente vestida. Sobre o corpete de brocado roxo, em redor do pescoço e caindo-lhe até meio do peito, uma artística renda de oiro e pérolas; os braceletes, mais largos que a mão travessa, de platina fosca e iluminados por esmaltes bizantinos, no mesmo estilo do enorme diadema que lhe cinge a cabeça e dos brincos desmedidos que lhe tocam nos ombros.

Conjunto hierático, suavizado pela doçura do seu sorriso, e pelo modo como os seus dedos brancos, de luar, acariciam tudo em que tocam...

Sorrindo encontra o meu olhar idólatra... Sorri mais docemente? Sorri sempre. Sorri aos que a adoram e como que lhe dirigem orações; sorri com um sorriso de parada, disfarçando o pensamento que roda não se sabe por onde; sorri lá do outro mundo, como deusa que é; mas por vezes endurecem-se-lhe as feições, numa expressão de orgulho, fugaz como um relâmpago...

É evidentemente uma criatura excecional, e causa surpresa vê-la comer como qualquer outra mulher o faria.

Levanta-se antes de findar a sobremesa, e reaparece no convés ao pôr do Sol, cercada dos seus escravos cujas fardas ainda mais reluzem, enquanto soldados e peregrinos entoam outro hino, de sedas agitadas sobre mares de violeta, ao Sol que morre...

Os meus olhos perseguem-na, ela porém não os pressente, aliás o seu sorriso não seria assim cada vez mais doce...

Quem é esta mulher; a que jerarquia pertence; como se chama? Nenhuma das pessoas que interrogo, incluindo o imediato, me podem ou querem informar; julgo até descobrir no modo como este último acolhe o meu inquérito o quer que seja de misteriosamente zombeteiro...

À noite, no salão, reclina-se num divã e os oficiais cercam-na como tríplice muralha doirada a defender um tesoiro único no mundo.

Para melhor a contemplar vou espreitá-la, do tombadilho, pelas janelas do salão. No seio da noite os meus olhos devem fuzilar, porque de repente ela sustém o sorriso e aponta para onde eu estou, com ar alucinado, como quem vê um espectro. Mas o seu rosto logo serena, sem que nenhum dos seus escravos aperceba o olhar de fogo com que, da escuridão da noite, lhe abraso a carne.

Essa calma foi talvez um disfarce, para desviar a atenção do séquito, do espectro que divisou; todavia não a pode manter; altera-se-lhe novamente a expressão da fisionomia; inquieta, medrosa, fixa ansiosamente a janela donde a contemplo, busca penetrar o mistério da minha presença; e subitamente, tapando os olhos com ambas as mãos, levanta-se e despede-se, fazendo sinal de que a deixem ir sozinha, porém nenhum dos oficiais a abandona e toda a escolta desce com ela a escada, acompanhando-a, sem dúvida, até à porta do seu camarote...

Fico ardendo em luxúria, e fumando sem cessar entretenho a minha insónia passeando no convés até quase manhã.

Para complicar a situação, a atmosfera de sensualidade intensifica-se com a presença de um marujo que, eu já notara de dia, adolescente de expressão felina, imberbe, com a boca de delicado recorte (cujas comissuras comprime sem descanso) se cruza comigo centenas de vezes, na estreita passagem entre a amurada e a parede do salão. O seu olhar fosforesce, provoca-me, persegue-me, acaricia-me...

Ao dia seguinte magnificência azul de mar e céu espelhados. Desse luminoso quadro a deusa surge, sempre com o seu cortejo rutilante. Vem envolta nas pregas dum roupão de veludo cinzento, bordado a azeviche, a cabeça descoberta, com dois fartos bandós de cabelos loiros muito alisados, onde brilham aqueles mesmos tons argênteos que o Velásquez punha no penteado das suas infantas.

Vem fresca, viçosa – rociada como rosa de abril. De longe o meu olhar a saúda; reconhece-me? sorri para mim? mas foi um relâmpago: ilusão, certamente.

Cerra-se-lhe em volta, mais ciosamente, o círculo de oiro das fardas submissas. Essa impenetrável muralha, porém, já a não isola nem a defende do meu olhar desejoso, ávido...

Mas vamos entrar no Bósforo; eu fico em Constantinopla e ela decerto segue para a Rússia. Não tem pois nada de estranho que aceite ou corresponda agora às orações que lhe reza o meu olhar.

Conheço a cruel artimanha, de que a experiência da vida me deu já tantos exemplos, com essas mulheres de acaso que, sentindo-se desejadas, adoradas, correspondem sem pejo aos olhares gulosos de quem sabem ou supõem que vai partir e nunca mais se encontrará, só pelo prazer de lhe envenenar a existência.

Deixá-lo; gozemos o momento presente, que o futuro a Deus pertence. Há instantes em que os nossos olhares se prendem e percorre-me o corpo uma onda de fogo...

Começam a divisar-se os minaretes de Constantinopla; o panorama sem par da prodigiosa cidade desenrola-se lentamente, aos clarões de um Sol que brilha entre as pompas fulgurantes que lhe preparam o ocaso.

O Tchikachoff lança ferro. Já os criados trouxeram para o tombadilho a bagagem dos passageiros que vão desembarcar e estão pegados às amuradas, embevecidos no maravilhoso espetáculo. Eu vou ao meu camarote, mais para me despedir do que para verificar se lá me ficou alguma coisa esquecida. Volto com as lágrimas nos olhos.

Mas ao chegar à escada, que é de dois lanços e forma uma espécie de gruta imersa em trevas, enxergo o seu vulto. Vem sozinha.

Como um louco, desvairado, vou para ela, tomo-a nos braços, deito-a sobre o divã; as minhas mãos sôfregas percorrem-lhe o corpo, os meus lábios ardentes desalteram-se na fonte clara dos seus cabelos, no perfume dos seus olhos, no sumo da sua boca, e param um instante no seu pescoço com um tão violento beijo de vampiro que ela recua e parece querer fugir.

Mas eu tenho-a bem presa nos braços que são de ferro. Mordo-a na boca que se abre e cede como um fruto maduro; mordo-a brutalmente e chupo-lhe os dentes como se fossem bagos de laranja. Ela solta um profundíssimo suspiro, beija-me e... desmaia.

Que tempo durou esse delírio?... Ela levanta-se arrebatadamente e como que voa pela escada acima; eu fico ainda um momento pasmado, o corpo todo embalsamado em gozo, mas com o sentimento de que cometera uma ação má, envergonhado de lhe aparecer.

Na mão fechada tenho um punhado de cabelos (arrepelados brutalmente num derradeiro e insensato esforço para a reter) que remexem como se estivessem vivos..., guardo-os junto ao peito, recordação para o resto da vida.

Subo ao tombadilho, gratifico o criado, embarco no bote onde me espera a bagagem, tudo maquinalmente, como se estivesse sonâmbulo.

Sentado no bote nem ouso levantar os olhos para o vapor, mas faço-o, por fim, a medo, e vejo-a que me acena com o seu lenço de rendas, com grande espanto dos escravos que a encaram escandalizados...

Bougie, março, 1934.

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