Novelas Eróticas
Manuel Teixeira-Gomes
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Novelas Eróticas
CORDÉLIA
Mais n'est-tu pas
toi-même un
jet d'eau qui
s'irise
Et qui vers
l'infini s'élance et
puis se brise?...
PHILÉAS LEBESGUE
As minhas relações com gente da Catalunha datam da infância, graças a uns negociantes de cortiça, de S. Feliú de Guixols que se estabeleceram na minha terra e de que ainda hoje lá existe descendência. Gente honrada, trabalhadora e bastante culta, mas sobretudo orgulhosa das virtudes da sua raça e belezas da sua província, do seu trato me veio o conhecimento dos seus poetas, e a curiosidade de lhe visitar a pátria e ver-lhe os monumentos.
Numerosas foram, no decorrer da vida, as minhas excursões pela Catalunha, dando-me ensejo de assistir ao extraordinário desenvolvimento da sua capital a que me afeiçoei e onde repetidas vezes fui embarcar para Itália.
Em uma dessas ocasiões, esperando vapor que não aparecia, a minha demora ali foi relativamente grande, permitindo-me penetrar um pouco mais na compreensão do complicado problema catalão, social, religioso e político, ao passo que vagarosamente, e quase sempre a pé, ia explorando os curiosíssimos arredores da grande cidade.
Ao contrário do que me tem sucedido noutros sítios, dos quais a primeira impressão sobrepuja a quantas me produziram visitas subsequentes, ficou-me desses dias, bem vivo na memória, um quadro completo, que esmorece ou apaga a lembrança de todos os outros, com a agitação tumultuosa do operariado ativo, o antagonismo das raças e das crenças, a propaganda sindicalista e a clerical; a expansão fabril e o fanatismo diligente dos jesuítas e frades, que iam enchendo os arrabaldes de verdadeiros Escuriais, onde a burguesia aprendia a detestar a liberdade... alheia. Isto a par do variadíssimo pitoresco da paisagem, da prestigiosa Sé, das velhas e modernas igrejas, e do porto cujo movimento poucos igualam no Mediterrâneo.
Mas a pintura desse quadro (diversão a que devo renunciar por grande que seja a tentação de a fazer) não tem oportunidade neste relato, ao qual desejo dar o caráter de simplicidade máxima, em linhas sem atavios e traçadas rapidamente.
Flanando uma bela manhã pelo cais, assisto à chegada de um grande vapor, todo pintado de preto, em cuja popa tremulava a bandeira italiana. Tomo informações: chamava-se Arno, vinha do Brasil, e seguia nessa tarde para Génova.
Corro à agência a comprar bilhete. – Passagens em primeira classe não há, porque o vapor só tem segundas (além das terceiras), porém muito melhores do que as primeiras de outros vapores – diz-me o empregado, mas num tom falho de convicção, mole, e sem mostrar o mínimo interesse pelo caso. Resolvo-me, apesar de tudo.
Às três horas embarquei e fico estarrecido com o espetáculo que o tombadilho do Arno me oferecia. Por todos os lados se viam grupos de criaturas esquálidas e andrajosas, em volta de fogareiros onde assavam sardinhas; grupos semelhantes aos que se topam nas vielas imundas de algumas das nossas aldeias marítimas, como Alvor...
O criado de bordo, besuntão e descortês, mal me atende para declarar que nenhum camarote me fora reservado: – Se quiser espere pelo capitão, que foi a terra e não deve tardar – concluiu.
Pelo que me informa um marujo da tripulação, o barco era exclusivamente destinado a emigrantes, e a gente que se encontrava na tolda consistia no refugo das Puïlhas e das Sicílias, vomitado pelos Brasis e Uruguais.
Decido voltar para terra, mas quando acenava a um bote para que viesse buscar-me, descubro outro bote, já perto do vapor, com duas elegantes senhoras sentadas trazendo molhos de flores nos regaços. Detenho-me a observar para onde iriam. Vem para o Arno! Atracam à escada.
O mesmo marujo das informações anteriores afirma que são passageiras, para as quais há camarote reservado. Uma delas levantou-se. E alta, grácil, serpentina. Acompanham-nas dois homens ainda novos e bem postos. E toda esta gente para o Arno? Então eu também posso ir nele.
Os homens são o médico de bordo, rapaz de trinta anos e um primo de vinte, tipos venezianos, loiros, quase imberbes, com ares – e o aprumo – de S. Jorges que já venceram dragões.
A senhora alta, que primeiro se levantou, é mulher dum oficial de marinha e regressa a Itália, após longo cruzeiro em navio de vela para fortalecer os pulmões; a outra que se chama Cordélia – rapariga muito nova, de cabelos adamascados, pescoço delgado, cintura fina, quadris largos e rebeldes, harmonizando-se na curva das coxas –– é dançarina e trabalhou todo o inverno como corifea do corpo de baile do teatro Lyceu. Ambas piemontesas e naturais da mesma terra, aonde agora vão em curta visita.
O capitão chega em seguida e designa-me um camarote de oficial, excelente. Mas que figura, esse capitão! A assimetria natural do rosto, aumentada por um enorme inchaço da face direita, dá-lhe aspeto monstruoso, e os olhos, cuja luz desfalecia, apagando-se por vezes, eram como dois pequenos calhaus húmidos, tanchados em sanguinolentas cristas de galo.
Também pouco nos secou com a sua presença; sumiu-se para só reaparecer quando chegámos a Génova.
As senhoras e eu somos os únicos passageiros, e além de nós três só o médico e o primo assistem às refeições.
Quando nos sentámos à mesa para jantar já nos conhecíamos, conversávamos, e ríamos como se fôssemos todos amigos de anos. A bailarina fica ao meu lado e eu não me farto de a remirar, encantado sobretudo com o seu ar infantil e bondoso, e não sei o quê de carinhoso na curva do seio que me enternecia. Nos seus olhos garços a luz refletia-se em cambiantes.
Cordélia! este nome shakespeariano vai-lhe a matar.
A mulher do oficial de marinha, senhora de mais de quarenta anos, simpática, de aspeto padecente mas resignado, conserva traços de grande beleza; é amável, faz o possível para nos pôr à vontade e recolhe cedo à cama.
Jogamos o sete e mezzo todo o serão, a bailarina sempre a meu lado: as nossas mãos tocam-se, os olhares empeçam-se; eu quero perscrutar-lhes a ternura e ela não se esquiva; um intensíssimo desejo me assalta, secando-me a garganta e a boca... O prestígio que desde moço pequeno atribuí às bailarinas ateia o amor que começa; durmo pouco e mal, sempre com a visão do que seria o seu corpo nu, a perpassar-me na mente...
O dia seguinte foi todo de jogos e brincadeiras, não faltando o inevitável sete e mezzo. Dois beijos dados a furto, logo de manhã, abrem caminho à intimidade. Desconfio que a oficiala não gosta da minha corte a Cordélia, ou pelo menos que a faça tão descabelada na sua presença, mas para a tarde já nos isolamos.
O mar está mais doce do que seda, porém o ar esfria e eu abafo-a debaixo da minha capa; as nossas mãos prendem-se; a sua voz tem o timbre velado, longínquo e casto, mas pressinto que se lhe tocasse no seio desmaiava...
Combinámos um encontro, a data certa, em Turim, onde ela passará duas semanas com a família que a criou e a sua velha ama de leite, que estima ainda mais do que a própria mãe.
Cai a noite; os nossos lábios unem-se, e eu pasmo de que se possam separar, de que se não soldem...
Devemos chegar de manhã cedo a Génova, e ofereço-me para a ir acordar ao camarote. Aceita. Naturalmente não consigo dormir. Às três horas bato-lhe à porta muito de mansinho. – Entre – murmura a sua voz quase apagada. Empurro a porta que range levemente, o que me sobressalta e agonia; porém nenhum rumor se ouve.
Os meus olhos, acostumados à escuridão, distinguem um braço nu cuja mão acena pela abertura da cortina do leito inferior. Aproximo-me de rastos e beijo a mão, o braço. A mão puxa por mim. Abro a cortina e beijo-a toda: o seio, o ventre, as coxas... Sonho? Não; loucura, transporte, êxtase... Os braços frágeis, os seios pequeninos e túmidos, as coxas volumosas e marmóreas... Mas a companheira acorda, ou julga oportuno dar-se por acordada. – Cordélia, quem está aí? – exclama. Silêncio; a mão que por mim puxou acaricia-me demoradamente o rosto e logo assinala a necessidade de me ir embora.
Desembarcámos juntos e acompanho-as à gare onde nos despedimos. – Até breve, em Turim... – segreda-me ela.
Sob a impressão daquele corpo airoso e leve, Génova parece-me outra. Nem reparo na frialdade rígida dos seus imensos palácios de granito. Corro à igreja da Annunziata onde passo quase o dia todo, deliciando-me com a alegria do seu faustuosíssimo barroco, a que tão intimamente se casam as pinturas... e o estado da minha alma.
Ao dia seguinte ponho-me a caminho de Turim, passando por Milão, Brescia, Verona, Vicenza e Padova. Aqui encontro, no café Pedroechi, o médico de bordo, o primo, e a irmã deste, que é noiva daquele e cuja fisionomia nunca mais esqueci: testa de cinco pontas, olhos ridentes, lábios vermelhos como gomos de laranja de sangue. Jantámos juntos, visitámos a feira e assistimos ao espetáculo do circo, onde descubro uma voltigeuse que muito faz lembrar Cordélia, o que mais me exacerba o desejo, a ânsia de a rever. Será isso depois de amanhã, sem falta; conforme as indicações precisas que me deu, vou chegar a Turim três dias depois de ela lá estar e procurá-la-ei às cinco horas da tarde, como expressamente recomendou.
Apeei-me em Turim já perto da meia-noite; dormi regaladamente, despertando tarde com o coração e alma em pleno azul. Mas o dia foi horrorosamente longo. Vou ao museu que é encantador mas não me distrai; subo ao posto alpino cujo panorama tão-pouco me entretém; a cidade, sombria e regular como tábua de xadrez, parece que torna as horas mais compridas...
Os jornais da terra anunciam uma série de catástrofes, onde figura um pavoroso incêndio; que diabo me importa a mim que o mundo arda! Porém o mais escandaloso foi a indiferença – quase irritação – com que li no Petit Journal a notícia do suicídio do meu amigo Marechal, o elegante oficial belga, companheiro de tantos meses seguidos de alegre vida mundana: – Podia muito bem ter-se matado noutra ocasião – foi a oração fúnebre que lhe rezei...
Alfim aproximam-se as cinco horas da tarde. Tomo um trem, leio, soletrando, na carteira o complicado endereço, e tenho uma inconsciente surpresa, de que só depois me lembrei, ao ver a facilidade com que o cocheiro o entendeu, exclamando: – Ah! já sei – e partindo sem mais explicações...
Quando entrávamos numa larga e extensa rua, onde o movimento de carros e de gente era intenso, o cocheiro voltou-se para mim e indicando um alto prédio bradou: – Ali está a casa do incêndio...
Apeei-me meio tonto, mas ainda sem perceber claramente que ligação haveria entre a casa incendiada e o endereço que buscava; pronto porém me esclareci: o número era o mesmo.
Entrei já tomado de pânico, e quando estava pedindo informações a alguém que parecia representar a autoridade, uma velha lavada em lágrimas, que nos escutava de um banco próximo, levantou-se e encarando-me balbucia entre soluços:
– É o senhor... é o senhor aquele que a minha desgraçadinha esperava...
Era a ama de Cordélia.
Soube então que a bailarina fora uma das vítimas da catástrofe, e do seu lindo corpo torrescado só escapara, intacto, o braço direito, aquele mesmo que pendia nu, à beira da cama, quando eu entrei no camarote para a acordar...
Djidjelli, fevereiro, 1934.
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