O poder erótico em Cartas do Padre António Vieira e Cristina - BIOGRAFIAS ERÓTICAS
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O poder erótico em Cartas do Padre António Vieira e Cristina


Retirado da Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 52, 2014, sobre livro de Gloria Kaiser com levantamento histórico sobre o relacionamento erótico do Padre António Vieira e Cristina, rainha da Suécia, com excertos de cartas absolutamente fantásticos.

"Nós sabemos que por meio das palavras podemos superar
tudo; com palavras nós vencemos qualquer escuridão, pois
nada é mais forte e poderoso que a palavra."

Padre António Vieira 




O PODER ERÓTICO

Diário e cartas de Cristina Vasa, rainha da Suécia,
e do padre Antonio Vieira
Gloria Kaiser

O meu livro trata do padre António Vieira e do ano de 1689. Nessa época António Vieira tinha 81 anos de idade e vivia em Salvador, Bahia, Brasil, na Quinta do Tanque. 

Estava trabalhando nos seus famosos sermões e vivia recordando os cinco anos que passou em Roma (1669-1675), assim como a sua amizade com Cristina da Suécia. 

Uma amizade que uniu dois seres iluminados da história. A essa amizade devemos vasta correspondência, que contém algum grau de colorido erótico — o quanto, isto fica por conta da interpretação do leitor.

Ao começar a pesquisar sobre António Vieira, eu iniciei um diálogo com ele. E trata-se de um diálogo sem fim, já que toda uma vida não é suficiente para ler, interpretar, decodificar e, quem sabe, entender toda a sua obra. 

Vieira nasceu em Lisboa, no dia seis de fevereiro de 1608. Aos seis anos veio para Salvador, onde frequentou o Colégio dos Jesuítas. Tornou-se teólogo, missionário, diplomata. Em dezembro de 1667 foi condenado pela Inquisição de Coimbra. A sentença determinou que ele fosse privado da liberdade de falar em público e de pregar, além de ser banido para Roma por cinco anos.

Em Roma vivia Cristina Vasa, rainha da Suécia. Cristina era uma mulher que guardava em si os extremos. Ela é apresentada como uma mulher que, através de seus atos irresponsáveis, conduziu a nação inteira ao caos. Por outro lado, é admirada como cientista, génio linguístico e filósofa, o que, entre outras coisas, levou René Descartes a Estocolmo. Até mesmo a sua aparência é descrita de forma dúbia.

Fala-se apaixonadamente de uma bela nórdica de lábios carnudos, cabelo castanho-avermelhado e olhos verdes; porém, também, de uma mulher masculinizada, de voz grossa e ombros aleijados.

Conta-se que Cristina nasceu em 1626 e que teria sido preparada para sua função de rainha da Suécia através de uma educação baseada em princípios protestantes e patriarcais. Cresceu falando oito línguas e dominava os cálculos astronómicos mais complicados. Era formada em retórica e foi literalmente treinada a conduzir negociações diplomáticas de forma polida. Era destemida nas artes do tiro e da esgrima. Esperava-se dela que assumisse o trono, tivesse filhos e conduzisse a grandiosidade da Suécia de então à geração seguinte.

Entretanto, todos se enganaram com Cristina, pois diversas experiências traumáticas fizeram com que ela se distanciasse interiormente de seus mestres e procurasse o seu próprio caminho.

As limitações desmedidas e as lições impostas a ela eram compensadas interiormente pelo oposto: liberação, liberdade, libertinagem foram conceitos que se imprimiram na sua alma e no seu espírito e que se tornaram o fio condutor de sua vida, conferindo-lhe forças quase titânicas.

Quando ela tinha seis anos, seu amado pai, o rei Gustavo II Adolfo, morreu na guerra. Aos oito anos, Cristina conviveu com a loucura da mãe, Eleonora de Brandemburgo, que, em seu amor idolatrado e doentio pelo marido, insistia em não se separar do cadáver. Por essa razão, ele foi enterrado somente um ano e meio após a morte. No quarto ao lado do de Eleonora, no Palácio de Stegeborg, ficava o caixão com o cadáver de Gustavo Adolfo. 

Cristina era obrigada a cumprimentar o pai morto todos os dias, num ritual cruel. Gustavo Adolfo foi finalmente enterrado, mas Eleonora exigiu que lhe extirpassem o coração, que foi colocado em uma cápsula de ouro, a qual Eleonora mantinha pendurada no dossel de seu quarto. Nessa época Cristina dormia na cama da mãe. Imagine-se a cena: uma menina de oito anos, na cama, em um ambiente escuro, frio, e, suspenso sobre a cama, o coração do pai. Cristina ficou traumatizada. 

Outro trauma: a guerra devastadora que também levara seu pai não terminava. A matança recíproca de católicos e de protestantes espalhava-se por toda a Europa. Sabemos hoje que
Cristina definitivamente influenciou o final da Guerra dos 30 Anos, que afinal terminou em 1648.

Na vida particular, Cristina manteve uma amizade especialmente significativa com Ebba Sparre e decepcionou-se amargamente com o jovem diplomata francês Gabriel de Gardier.

Depois dessa decepção, Cristina decidiu que jamais se casaria: 

“Jamais serei um campo para um homem arar! E nunca me casarei!”

Além disso, decidiu converter-se à fé católica, por encontrar mais espaço para a liberdade espiritual na igreja católica, pois encontrou ali tanto pecadores quanto santos, um Michelangelo e uma Maria Madalena.

Para Cristina não havia nenhuma incongruência entre “crer” e “saber”. Ela queria ser uma filha obediente da igreja católica e, simultaneamente, continuar suas atividades como cientista. 

Apesar de muitas intrigas e resistências, ela realmente traçou o seu próprio caminho. Em 1654, aos 28 anos, abdicou do trono, convertendo-se à fé católica em novembro de 1655, em Innsbruck, na Áustria. Trata-se de um ato inimaginável, um ato único na história da Europa. 

Fata viam invenient (o destino encontra seus meios e seus caminhos): este era o seu lema — e ela o transformou em realidade. 

Após a sua conversão, viajou para Roma, onde passou a viver até a morte, ausentando-se somente para algumas viagens. Em 1657, Cristina experimentou a maior crise de sua vida, uma verdadeira catástrofe pessoal. Envolvera-se em uma intriga política, que culminou na sua reinvindicação do trono de Nápoles, e viajara a Paris em 1656 para negociar com Giulio Mazarin.

Em Paris, acabou tendo um breve caso de amor com o conde Giovani Monaldesco, o que rapidamente se transformou num relacionamento de dependência do qual somente conseguiu libertar-se com o fracasso da sua missão política napolitana. O final trágico desse relacionamento foi a ordem de execução do conde, dada por Cristina, em novembro de 1657, no Palácio de Fontainebleu. Ninguém na Europa reagiu, ela nunca foi julgada por isso. E devia viver com a lembrança dessa horrível ação.

Quando António Vieira chegou a Roma em 1669, Cristina contava com 43 anos. Vieira contava 61 anos. Ela estava firmemente integrada ao tecido social de Roma, havendo sido fundadora da Accademia Reale e cofundadora do Sqadrone Volante (uma associação em defesa da eleição livre do papa), além de dar apoio a artistas, como, por exemplo, Gianlorenzo Bernini.

Interiormente, Cristina era um ser dividido, que não tinha um interlocutor com quem pudesse discutir no mesmo nível.

Algumas folhas de papel com cópias de sermões do padre António Vieira eram o vade-mécum de Cristina, e, quando ela ouviu que esse padre teria vindo parar a Roma, imediatamente manifestou ao papa Clemente o seu desejo de que Vieira viesse a ser o seu pregador pessoal. 

O papa não pôde preencher o seu desejo, mas — fata viam invenient — encontrou os meios e um caminho.

Na escuridão da noite, o padre António Vieira passeava do Palácio dos Anjos ao Palazzo Riario, onde aprendia italiano com Cristina e onde eles conduziam as suas discussões.

A correspondência entre eles retrata dois seres humanos em sofrimento, ambos tentando vencer as suas próprias batalhas interiores. António Vieira tinha em mente viver uma vida de obediência, servir obedientemente à sua ordem, entretanto não conseguia de forma alguma calar-se diante de injustiças, de exploração, de decadência moral. Por essa razão a Inquisição “fechou-lhe a boca”. 

Cristina queria viver uma vida de cientista, livre e só. No entanto, subestimou a força do poder erótico. Foi só através do caso Monaldesco que ela se deu conta de quão intensa e elementar pode ser a ação do poder erótico.

O padre Antonio Vieira definiu o poder erótico (a força, o elemento vital que Cristina subestimou):

                "Quando sondamos até as últimas consequências tudo aquilo que nos desviou de nosso caminho, nós nos vemos nus e descobertos; então devemos reflectir sobre todas as besteiras de nossa amoralidade. Nós devemos sempre ponderar: a luta contra o poder erótico não pode ser vencida, pois dessa forma estaremos lutando contra a própria vida.

              Quando nos rendemos a um poder assim — e isto nunca acontece sem a nossa vontade — temos de aprender essa difícil lição. Temos de lutar contra o nosso orgulho, pois ele bloqueia todos os caminhos para o nosso eu verdadeiro. O poder erótico só pode ser domesticado pelo espírito. Nós temos de rezar e lutar para que o poder erótico se transforme em força para nosso espírito.

              Ou ainda: Nada resta para tais pessoas durante o tempo de purificação senão sua voz interior. É preciso encontrar as palavras. 

              Nós sabemos que por meio das palavras podemos superar tudo; com palavras nós vencemos qualquer escuridão, pois nada é mais forte e poderoso que a palavra. Nós podemos confiar que atrás da escuridão moram a luz e o amor. 

            Para tanto, primeiro é necessário atravessar o inferno, e nós não podemos criar um atalho para esse caminho. Temos de atravessar cada uma das câmaras do nosso inferno interior e devemos permanecer em silêncio; silenciar até que tenhamos superado a escuridão."

Dirigindo-se a Cristina:

           "Minha querida Cristina, uma cama jamais deve ser mais larga do que três palmos; além disso, durante o sono, devemos manter nosso corpo reto e todas as nossas forças se deslocam para a nossa alma, para o nosso espírito, que acendem uma luz dentro de nós. Ela nos indicará o caminho.

          Mas é claro que eu não estou lhe escrevendo para censurar a sua cama. Eu quero dar o valor exacto para o nosso abraço de ontem. 

           “Às vezes me faz falta o cheiro de pele”— disse-me você — posso tratá-la de você, não é? — e tem razão. Se nos foi ordenado caminhar pela treva, devemos então, apesar disso, aceitar o reconforto de sentirmos um outro por alguns momentos. Uma segunda pessoa ameniza todo sofrimento. Que bênção nos foi concedida, Cristina, pois sabemos que a nossa amizade foi selada com nosso abraço."

Cristina responde:

         "António, eu não quero fazer nada que possa abalar a nossa amizade. Na nossa amizade não existe aquele que manda e aquele que serve; o que existe é uma unidade: em nossas conversas, em nosso silêncio, em nosso abraço. 

            Quaisquer que sejam os acontecimentos e abalos que estejam por vir, eu persistirei e me manterei firme, pois a graça da nossa amizade e do nosso amor não me foi vetada; eu apenas a testemunho e assim me fortaleço por tudo o que ainda está por vir. Sempre sua, Cristina."

Outros trechos das correspondências remetem ao assunto:

          "Cristina, ambos estamos confusos — provavelmente permanecemos muito tempo em silêncio, de tal modo que finalmente nossos corpos tomaram a palavra e com isso, por momentos, fomos resgatados da solidão. Mas nós dois sabemos que é nosso destino caminharmos sozinhos.

           Cristina, nós sabemos agora que o céu não nos privou de nada e, portanto, a paz deve nos envolver.

         Querida Cristina — às vezes você quer fugir. Para onde? Não existe distensão e esquivamento, nós temos de cuidar de nossa missão, e sua missão é Roma. 

             Para a nossa alma restam imagens de lugares de refúgio para respirar. Quando em minha cela, com o frio, o sangue pára de correr, eu me refugio no céu tropical da Bahia e afundo o meu olhar no azul; ali permaneço por vezes durante horas, até que no meu céu tropical cintilem estrelas. Com isto eu abrando minha saudade."

Ela responde:

         "Querido António, você me ajudou a aceitar a mim mesma. Você me ajudou nas palavras; você me ajudou a contar tudo sobre minha sombra. Eu vivo como culpada entre não tonsurados, eu vivo como culpada entre não culpados. 
       Você me explicava: o meu horror se tornaria maior ao longo dos anos; por conseguinte, a minha verdade iria me livrar do juízo arrogante e leviano sobre outros."

O padre António Vieira:

           "Como eu a compreendo bem, Cristina! Também eu, às vezes, formulo perguntas: por que justamente agora, depois de ter findado a sexta década de minha vida? E agora — você percebe em minha caligrafia que eu interrompi esta carta por algumas horas — eu me esforço para encontrar as palavras certas: jamais desejamos cair em uma paixão destrutiva. A paixão transforma-se muito rapidamente em fogo-fátuo."

António Vieira também se manifestou em relação às circunstâncias reinantes em Roma — escreveu um discurso que foi traduzido para o italiano por Cristina:

          "Em meu discurso sobre São Roque, este santo especial, que curou e consolou os doentes da peste, eu não citei dois aspectos da peste moral: pouca fé — pusilanimidade — e muita fé, confiança excessiva. 

            A peste, a pior desgraça para os homens. No entanto, a peste é uma epidemia que não só arrebata corpos. A peste se move sorrateiramente em uma comunidade, em uma cidade, em um país; ela infecta tudo e mata todos. 

         Quando o governo, a ciência, a religião, o conceito de moral são infectados pelo germe da peste, isso pode conduzir ao declínio dos homens. Peste significa catástrofe, significa decisões erróneas, catastróficas, que se disseminam como uma doença contagiosa, como uma epidemia. Saiamos e curemos — disseminar o bem pelo contágio!"

E António Vieira sempre lembra:

"Nós sabemos que com palavras superamos tudo, com palavras podemos vencer qualquer escuridão, pois nada é tão forte e poderoso quanto a palavra."

Isso me faz pensar em Sigmund Freud, que 230 anos depois de Vieira, em 1890, iluminou o fundo das almas com as suas análises de palavras. 

Tanto António Vieira quanto Sigmund Freud procuraram impiedosamente a verdade. A comparação é audaciosa, eu sei disso, mas trata-se aqui de ciência e de assistência espiritual, que andam de mãos dadas, e vemos, antes de tudo, quão limitada a ciência é quando o assunto são os problemas e as angústias que moram no fundo da alma de cada um de nós, “pois nada tem tanta força quanto a palavra”, isto é certo.

Entretanto, a análise fria e científica não nos ajuda a desatar os nossos nós interiores — como sofrimento, culpa, solidão.

Em maio de 1675, o padre António Vieira definiu num discurso na Accademia Reale sua posição em relação a Cristina:

"Santidade, confesso minha amizade com Cristina Vasa da Suécia, confesso que a atenção dada por mim a essa mulher não diminuiu minha atenção dada a Deus, e que ao contrário a fortaleceu. Reconheço igualmente que sem a atenção de Cristina eu não teria sobrevivido os cinco anos passados sem danos à alma e ao espírito."

Essa manifestação chocou o papa, que imediatamente mandou que Vieira se silenciasse sobre o assunto. 

Não se falou mais sobre a amizade de António Vieira e Cristina, e todas as provas foram trancadas em caixas. Poucos dias depois da confissão de amizade por Cristina, em maio de 1675, o papa Clemente IX libertou o padre António Vieira pessoalmente de toda a culpa e da proibição de pregação e de trocar ideias.

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