"Deus Ex Machina" - BIOGRAFIAS ERÓTICAS
Chinese (Simplified)DutchEnglishFrenchGermanGreekItalianJapanesePortugueseRussianSpanishSwedish

"Deus Ex Machina"

Novelas Eróticas
Manuel Teixeira-Gomes


Novelas Eróticas 



DEUS EX MACHINA

O inverno de 1890 foi dos mais ásperos que flagelaram a Europa durante o século findo, e na Holanda, então – onde eu o passei quase todo, pois relativamente temperado e malissimamente preparado para as baixas temperaturas, morria-se de frio. Mas morria-se deveras, isto é: apareciam com frequência, nas ruas das cidades populosas, criaturas humanas inteiriçadas e mortas de frio.

O fleumático holandês clamava nos jornais contra a inclemência celeste, tal qual o exuberante napolitano – na desgraça todos se parecem –, anos depois vendo o Vesúvio toucar-se de gelo e a Riviera di Chiaia atascada em neve, se insurgia, também nas gazetas – como se a culpa fosse do governo –, contra a Providência que ordenava ou permitia aqueles rigores de temperatura em região a eles tão pouco afeita.
     Foi o caso que nos Países-Baixos todo o mês de dezembro a temperatura se manteve entre 25° e 30° centígrados de frio; gelaram completamente os canais, os rios e até o Zuider-Zee, o seu pequeno Mediterrâneo. Mas os holandeses, em todo o caso melhor apetrechados do que os napolitanos para resistir a semelhantes intempéries, aproveitaram a situação para dela tirarem algum partido, e metidos em peles, caras ou baratas conforme as posses de cada um, puseram-se na rua a patinar, e como grandes mestres que são nesse género de divertimento insensivelmente se transformaram de sorumbáticos, mazorros e grotescos em gente comunicativa, desempenada e alegre, dando ao país uma animação extraordinária e nunca atingida em invernos normais.
       Nos bairros populares das grandes cidades, como Amesterdão, o movimento durava, com intensidade quase igual, dia e noite, pois a qualquer hora o mesmo formigueiro humano cobria os canais, gente de todas as idades deslizando sobre o gelo em caprichosas evoluções e agitando os braços para atear o calor no corpo. Seria difícil encontrar-se alguém na rua que não levasse consigo um par de patins.
      Era uma espécie de frenesi contagioso a que, naturalmente, não soube resistir e como houvesse passado vários invernos de aprendizagem no Norte da Europa aperfeiçoei-me e saí-me também exímio patinador, levando os dias inteiros a descrever corretíssimos SS e geométricos 88 sobre os lagos dos parques, na companhia dos meus amigos e das suas respeitáveis famílias.
       Um dia que eu ficara de me encontrar em Vondel Park – próximo ao Rijks-Museum – com vários elegantes de ambos os sexos para dali seguirmos em excursão de patinagem até Harlém, logo à entrada do parque, numa volta estreita e mal concorrida do lago, a atenção prendeu-se-me irresistivelmente numa rapariga encantadora, de farta e negra cabeleira solta, que patinava sozinha, e fiquei-me a contemplar-lhe os graciosos movimentos sem mais me lembrar de que a poucos metros de distância era impacientemente esperado por um numeroso grupo de amigos.
      Ela notou sem demora a embasbacada insistência do meu embevecimento, que pareceu desagradar-lhe soberanamente, e como, ao transpor uma das curvas do lago, se voltasse para verificar se eu ainda a remirava, deu um jeito ao pé, de que resultou desmanchar-se-lhe o patim. Isto encolerizou-a grandemente, purpurizando-lhe o rosto e tornando-o ainda mais adorável.
       Procurou sítio para sentar-se e tirar o patim, mas não querendo vir à margem do lago, a fim, talvez, de evitar a minha proximidade, mesmo sobre o gelo se deixou cair, como que numa birra infantil, e baldadamente empreendeu endireitar a haste de aço ou quilha que se entortara ao saltar do velho patim.
       Mas à medida que se ia convencendo da inutilidade dos seus esforços assim crescia o seu despeito, a sua irritação, até ao ponto de interpelar brusca e rudemente outro inocente transeunte que parara também para a ver, dizendo-lhe qualquer coisa que devia significar: «ainda se não fartou de olhar para mim?». No entanto, os seus olhos, esbraseados pela cólera, quando poisavam nos meus pareciam abrandar e dir-se-ia que exprimiam intenções conciliadoras.
       Convencendo-se de que nada conseguia e desistindo afinal de continuar no recreio da patinagem, quase enfurecida arrancou os atilhos aos patins e infantilmente os ergueu ao céu, num jeito de ameaça; depois meteu-os debaixo do braço e com os olhos marejados de lágrimas foi-se, mas não sem primeiro me lançar um rápido olhar no qual a minha fatuidade descortinou convite a que a seguisse.
       Era uma forte rapariga de seus quinze anos, com o desenvolvimento de mulher feita, embora vestindo saia curta; a tez levemente morena ou desse tom mate, que no Norte se contrapõe ao róseo nacarado das loiras e à luz meridional se capitularia, talvez, de alvura láctea; olhos imensos e pretos, da cor do cabelo que lhe caía, solto, sobre as costas, fartíssimo e ondeado como um velo de azeviche.
       Sem mais pensar nos meus companheiros saí do parque e fui-lhe, discretamente, no encalço.
       Aquela parte da cidade, cortada, como os outros bairros de Amesterdão, de canais que ali se caracterizam pela sua sinuosidade e pela rusticidade afectada ou real das suas margens, mais ou menos ornadas de vegetações diversas – ao tempo despojadas de folhas mas florescentes de neve – e pela fantasia e variedade na arquitectura das edificações, reveste o aspecto de cidade de bonecas, construída em Nuremberga.
       Tomei à esquerda pela margem do mais próximo canal, e mesmo em frente às ruínas da ópera recentemente destruída por um incêndio, quando a minha heroína ladeava direito a uma ponte, encontrámo-nos; cruzaram-se os nossos olhares e ela, após hesitação muito breve, retrocedeu para tomar o meu caminho, passando-me logo adiante. Estuguei o passo, alcançando-a sem demora, e dirigi-lhe não sei já que banal galanteio. Recebi pela expressão indignada dos seus olhos coriscantes a resposta esperada, mas sem me intimidar perguntei-lhe se falava francês e ela, evitando o meu olhar, mas tornando-se da cor de lacre, respondeu:
       – Sim senhor, falo, mas isso que lhe importa?...
       – Importa-me imenso para podermos conversar, porque eu não sei holandês.
       – Conversar!... Pois tem alguma coisa a dizer-me?
       – E ainda o pergunta!
       – Mas se eu não posso adivinhar!
       Ela então estacando e fazendo-se novamente vermelha, fixou-me com        agudeza e, batendo pé, gritou:
       – Por sua causa é que eu escangalhei o meu patim...
       – Por minha causa?...
       – Sim senhor, o senhor é que teve a culpa; se não se tivesse posto a        olhar para mim daquela maneira não sucedia nada...
       – Então acredita no mau olhado?...
       – Não sei o que isso é; sei que se o senhor não olhasse para mim...
       – Se eu olhei para a menina foi por sua culpa...
       – Essa agora...
       – Linda como é...
       – Ainda ninguém olhou para mim daquele modo...
       – Toda a gente olha...
       – E eu ia desmanchando um pé...
       – Não me diga isso que me causa muita pena...
       – Pena, muita pena, é que eu lhe queria dar...
      – Isso não é sincero. Quer-me convencer com esses olhos que tem mau        coração.
       – Se vivesse comigo veria...
       – E porque não hei de viver?
       – Há de viver até ali ao fim da rua...
       – Nem mais nada! Não quer então que eu a acompanhe?
       (Silêncio.)
       – Mora muito longe?
       – O senhor é curioso a valer.
       – Mas não faz mal nenhum perguntar.
       – Sim senhor, moro muito longe...
       – Deixe-me então acompanhá-la um pedacinho mais...
       – A rua é para toda a gente...
       – Gostava tanto que fosse minha mestra de patinar.
       – Eu?!
       – Então?
       – Nunca...
       – Mas porquê?
       – Os meus patins não prestam... – e ao dizer isto sorriu tão        ingenuamente, já tão confiada!
       – Olhe que desculpa. Em qualquer parte se alugam bons patins.
       – Mas eu não tenho dinheiro...
       – Alugo-os eu.
       – E eu que lhe não quero ficar a dever favores...
       – Mas sendo minha mestra quem os ficava a dever era eu...
       – Talvez... Mas o senhor não há de ter jeito nenhum para aprender...
       – Porque julga isso?
       – Eu sei lá. Porque não tem cara de ter jeito... Não é loiro...
       – Também a menina não é loira.
       – Ora, mas sou holandesa e sou...
       – É judia?
       O que fui eu dizer! Havíamos entrado já em camaradagem franca ao        tempo de soltar esta inocente pergunta, cujo efeito na minha graciosa        companheira foi indescritível.
Empalideceu, ruborizou-se, gaguejou e a muito custo despejou a insopeável cólera:
       – Porque é que o senhor imagina que eu sou judia? Onde é que se vê que eu sou judia? Então não se pode ter o cabelo preto sem ser judia? O senhor naturalmente é judeu e pensa que todos o são...
      E levou cinco minutos seguros em recriminações, à minha impertinência, à minha estupidez, numa irritação vivíssima que todas as minhas desculpas não conseguiam apaziguar. Por fim, de feições dolorosamente contraídas, as lágrimas a bailarem-lhe nas pestanas, disse em voz baixa:
       – E eu que já estava fazendo tanto gosto em ser sua mestra!...
      Aproveitei esta ponte lançada à reconciliação e, chamando-lhe criança, como criança a fui consolando, explicando-lhe que nenhuma intenção houvera da minha parte em a melindrar; que ser judia não era vergonha alguma e já agora que ela mostrava tanta zanga aos judeus sempre lhe dizia a verdadeira razão por que a supusera daquela raça. Não fora tanto pelos cabelos pretos, nem pela tez morena, fora por outro motivo muito diferente.
       – Que motivo? – acudiu logo ela, ardendo em curiosidade.
       – Parece-me que o melhor será não dizer, não vá a menina zangar-se        outra vez...
       – Só por isso, não... Há de dizer.
       – Tenha paciência mas não digo...
       – Diga, que mando eu... – exclamou novamente arrebatada.
       – Digo já... É porque lhe achei mau coração.
       – Eu? mau coração, eu?
       – Mas a menina mesmo o confessou...
       – Isso foi a brincar – rematou ela já com a boca e os olhos cheios de   riso.
     Pouco depois estavam feitas as pazes, quando ela, parando subitamente e circunvagando a vista, reconheceu que entrávamos em Rembrandt Plein, aonde convergem as mais centrais e concorridas ruas de Amesterdão, e observou:
       – É tempo de nos separarmos; não gostava que nos vissem juntos.
       – Se quiser entramos num café...
       – Hoje, não.
       – Bem... E amanhã onde nos encontramos?
      – Para mim o sítio melhor é Vondel Park, e para si também, por causa da patinagem.
       – Pois seja em Vondel Park.
       – À uma da tarde...
       – Fica justo...
      – Adeus... – e estendeu-me a mão definitivamente confiada, e ao mesmo tempo com a expressão voluntária e generosa de quem concede uma inestimável graça, tão magnânima e dadivosa que eu, fixando-me novamente na sua estranha formosura, imaginei apertar entre as minhas a mão de alguma fada oriental perdida nos gelos da Holanda.
      Embora Amesterdão seja uma vasta e populosa cidade onde se pode passear levando uma mulher pelo braço, sem riscos de encontros impertinentes, quando, naturalmente, se evitem os centros de maior concorrência, eu devia recear a indiscreta curiosidade da colónia israelita, da qual, por me verem a miúdo na companhia do Sr. Kater, um dos seus mais conspícuos membros, eu era conhecido, e devia sobretudo evitar Vondel Park que era, naquela época de delirante patinagem, o ponto de reunião predileto da gente elegante a quem as minhas habilidades em descrever no gelo SS e 88 não podiam ter passado despercebidas. Mas na ocasião de me despedir da minha amiga de encontro não me ocorreram argumentos que desabonassem o local, e como o parque fosse vastíssimo, contendo recantos de pouca frequência e outros concorridos de gente de pouco e até de pobres, no dia seguinte buscámos sítio adequado às nossas entrevistas, que nos continuou a servir por algum tempo, limitando-me eu, por medida prudente, a modificar o meu vestuário de modo a não destoar escandalosamente da quase indigência que a minha companheira aparentava.
       Ela percebeu logo às primeiras experiências, apesar de toda a minha simulação, que eu não era tão ignorante em patinagem como confessara, e ao segundo dia, como nos aventurássemos, de mãos dadas, levados pela embriaguez de resvalar livremente, por uma parte mais larga do lago, sucedeu que a minha companheira se desequilibrou e eu instintivamente a segurei pela cintura, amparando-lhe o corpo com o meu e numa rápida volta em que eu era mestre exímio não só a livrei de uma queda certa mas evolucionei com ela aos ziguezagues, absolutamente esquecido do meu papel de discípulo.
       Tive então de confessar o meu embuste, o que lançou no horizonte da nossa felicidade uma nuvem escura. Expliquei-lhe que mentira para arranjar pretexto às nossas entrevistas, mas ela, além de manifestar a sua antipatia aos homens que mentiam – coisa própria de mulheres –, observava que as mentiras não tinham desculpa senão quando eram indispensáveis e muito pobre devia ser a minha imaginação para não descobrir melhor pretexto.
       – Se me tivesse dito francamente: sei patinar e gostava de o fazer consigo, eu vinha da mesma forma e não me entrava agora no espírito esta desconfiança que me aborrece e magoa...
      Interrompeu a diversão, nesse dia, e só dois dias depois é que voltámos a encontrar-nos, eu receoso de não ser perdoado e ela já esquecida e novamente risonha e afável.
       A minha heroína chamava-se Camila e era filha de um negociante de fruta que morava para os lados de Geldersche Kade, homem, ao que percebi, trabalhador mas de limitados recursos, e fabulosamente prolífico: catorze filhos. Camila ia nos dezassete anos e tinha a seu cargo cuidar de dois dos seus irmãos mais novos. A sua educação literária fora relativamente esmerada, mas o seu caráter indisciplinado, o seu génio impulsivo, quebrava os moldes de requintada sociabilidade a que a haviam sujeitado durante algum tempo, tornando-a criança caprichosa e fantástica. Ela dizia a miúdo: bem sei que não devo fazer isto ou aquilo, mas por isso mesmo o faço.
       A família não sabia que destino dar-lhe; as irmãs e irmãos mais velhos ganhavam já a vida, só ela não tinha préstimo algum e como a sua permanência em casa era motivo perpétuo a dissensões e dissabores, os pais davam-lhe ampla liberdade, esperando ensejo de a casar ou de a empregar quando porventura se oferecesse ocasião que ela não refugasse.
       Assim era que levava a melhor parte dos dias flanando, sempre com um romance do Querido – espécie de Zola holandês – no indispensável, um depósito de côdeas de queijo, pedaços já secos de pão com massas de Corinto, na algibeira a que ela recorria – chamando-lhe o seu Entrepôt-dok ou porto franco – sem a menor cerimónia, fosse onde fosse, para meter na boca o primeiro bocado que topava.
       Continuámos a encontrar-nos em Vondel Park, quase sempre às duas da tarde e após uma hora de patinagem, tanto ou mais emocionante do que seria uma hora de baile em salão aristocrático, emocionante pela sensação deliciosa que a proximidade do seu corpo me provocava, no calor daquele exercício incomparável que acelera a circulação sem embotar os nervos e, na sua materialidade, presta-se aos mais graciosos e artísticos movimentos; após a excitação saudável dessa hora, ela, ordinariamente, consentia que a acompanhasse até Nieuwe Markt, o pitoresco mercado de peixe, vizinho à casa paterna. Atravessávamos então a parte mais velha, populosa e pitoresca da cidade, onde os canais se intrincam e as pontes se multiplicam à sombra de torres lendárias que nascem da água e se coroam de arrendados campanários e ali, mais do que em qualquer outro ponto, as casas desequilibradas e irregulares revestem aspetos de armada de galeras flutuando, adornadas, umas e outras meio submergidas. Sozinho seria impossível aventurar-me por aqueles bairros cujo encanto veneziano eu suspeitava sem nunca o poder fruir cabalmente, mas na companhia de Camila, que jamais perdia o fio do labirinto, eu ia repousadamente observando a vida estranha daquela população anfíbia, formigando num cenário que, a despeito da realidade, parecia obra de fantasia, e longe dos olhos avultava na memória com todos os carateres de uma criação fantástica e inverosímil. Dificilmente eu daria ideia do prazer experimentado naqueles passeios, em que nós vagueávamos como dois moços pequenos, chupando laranjas e parando, pasmados, a cada passo.
       Outras vezes íamos quase ao fim do Vondel Park a uma leitaria onde abancávamos para comer bolos, e levávamos uma hora calados, metidos a um canto, olhando enternecidamente um para o outro – eu, cheio de receio instintivo de que reparassem na minha linda companheira, e assim fornecesse pretexto à inveja e à maledicência que me perturbassem ou destruíssem a felicidade.
       Sucedia também entrarmos no museu, não para ver pinturas que pouco interesse inspiravam a Camila, mas para percorrermos as coleções coloniais onde cada objeto lhe desafiava a imaginação, trasladando-a às regiões de costumes e interiores holandeses que ela animava compondo romances adequados às figuras de cera e aos misteres que os seus trajos denunciavam; ou às coleções de móveis e loiças com que ela ornava imaginárias habitações como se andasse na labuta de arranjar o ninho.
      Aconteceu mesmo, duma ocasião em que a vi mais empenhada neste devaneio, dizer-lhe eu: – Bem, a casa está pronta e agora nós metemo-nos dentro dela, temos muitos filhos, e somos muito felizes, como no final dos contos...
       – Não diga disparates – atalhou –, o senhor não casava comigo...
       – Mas porquê?
       – Porque eu sou pobre e... – em voz sumida, baixando os olhos – judia...
       – Sim?... Pois as judias nunca me meteram medo e a prova foi que eu a supus tal a primeira vez que lhe falei...
       – E isso é o que eu dificilmente lhe perdoarei...
       – Mas, minha amiga, eu não a entendo...
     – Ah!, é que eu tenho um imenso orgulho em ser judia... Mas parece-me que os judeus não trazem escrito na cara a raça a que pertencem e quando mo disse... Olhe, ainda hoje penso que escarneceu de mim...
       – Bem!... Aqui voltamos nós ao começo quando já se tratava do casamento que é o fim...
       – Casamento!... Isso é continuar a zombaria... Pois saiba que eu também não queria estar sujeita a um homem que fosse de religião diferente da minha... nem que fosse mais rico do que eu... nem...
       – Diga tudo...
       – O melhor é estar calada!... Não é verdade que não há coisa tão difícil como é a gente dizer exatamente o que pensa? Religião! Que me importam a mim essas histórias da carochinha?... Ah!, mas nunca percebi porque se há de gostar só para casar... Casar é uma espécie de negócio e quando se gosta de alguém não se deve pensar em interesses...
       – Agora queria eu perguntar-lhe se gosta de mim...
       – Para casar?...
       – Não...
       – No dia em que gostar logo lho digo...
      Convém notar que apesar da facilidade com que no Norte os namorados se tuteiam, eu não conseguiria que Camila o fizesse; por aparente ou real espírito de submissão ela insistia em que eu a tratasse por tu, a que eu não acedia por natural delicadeza, salvo em lances de enternecimento afetivo.
       Poucos dias depois, seguindo ao longo do Amstel, embevecidos na embriaguez do nosso sonho que parecia cifrava-se na esperança vagamente entrevista de atravessarmos a vida errantes e juntos, deteve-nos a multidão que se aglomerava em volta de um imenso camião de cervejeiro, voltado, cujos barris se haviam partido e borboleteavam o líquido conteúdo na calçada. De repente Camila, em tom sobressaltado, observou-me:
       – Há um sujeito na plataforma daquele americano que o cumprimenta...
      – A mim?.... – E seguindo a indicação da minha companheira reconheci o Sr. Kater que insistia em saudar-me, mas como o ajuntamento se desfizesse e o americano seguisse o seu caminho eu mal correspondi aos cumprimentos e logo esqueci o encontro. Mas não passaram muitos minutos sem que notasse na fisionomia de Camila sinais evidentes de preocupação.
       – O que tem? – inquiri.
       – Nada... Olhe lá, conhece aquele sujeito do americano?
       – Muito. É uma das pessoas que eu melhor conheço em Amesterdão...
       – O Sr. Kater?... – interrompeu ela, surpreendidíssima.
       – Sim. Mas a Camila também o conhece?...
       – De vista. Com os meus pais e alguns dos meus irmãos é que ele tem relações...
       – E ele não sabe quem a menina é?
       – Ele teve negócios com o seu pai?...
      – Já teve..., antes de meu pai se estabelecer de conta própria. Eu ainda lhe não disse o nome do meu pai, chama-se Cruteman.
       – Nunca ouvi falar nele...
       – E o Sr. Kater gostou muito da minha irmã mais velha, que já é casada...
       – Ah!... E como soube isso?
     – Conversas ouvidas em casa... Creio mesmo que isso concorreu para meu pai abandonar o escritório do Sr. Kater... Mas adeus – e ajuntou rindo: –     Já cheira a peixe e nós sem repararmos que entrávamos no Nieuwe Markt, terreno defeso... Até amanhã...
      De Nieuwe Markt a Oude Schans, onde era o escritório do Kater, havia dez minutos de caminho e, embora a ocasião não fosse própria para o procurar, pois àquela hora de volta da Bolsa encontrá-lo-ia certamente na crise diária de trabalho, cercado de empregados, transmitindo ordens e fechando contratos, o ouvido colado ao telefone e a voz ditando, imperiosamente, concisos mas importantes telegramas, não resisti à tentação de o importunar para colher qualquer informe acerca desses Crutemans que deixavam uma filha tão linda e caprichosa à solta e vestida miseravelmente.
       Kater fora das pessoas com quem eu primeiro travara relações em Amesterdão, e as continuara inalteravelmente num pé de quase completa intimidade – embora com profundas reservas de ambos os lados, reservas até certo ponto justificadas pela enorme diferença de idade.
       Fora por ele iniciado nos mistérios da vida holandesa, essa vida que parece regida rigorosamente por preceitos de perfeita moral, universalmente acatados e que no entanto é viciosa como nos mais desacreditados países do mundo. Mas o vício na Holanda excita-se com recatadas cautelas e por isso mesmo é ali mais requintado e sedutor, e as suas consequências escandalosas mais surpreendentes, inesperadas e retumbantes.
      Quantos pais de família unanimemente respeitados e venerados ali aparecem de um dia para o outro arruinados pelas exigências faustosas de amantes que ninguém lhes conhecia, e quantos abandonam subitamente os lares e a pátria, após liquidações forçadas de grandes haveres, para seguirem o destino de alguma hetaira, cujas sedas rugedoras e joias resplendentes causavam pasmo em Kalverstraat sem que a arguta maledicência sequer farejasse a origem certa de tamanho luxo.
       Tão apertados são os preceitos da boa sociedade holandesa que basta a um dos seus membros, mesmo novo e solteiro, ser visto na companhia de alguma mulher de reputação suspeita para se lhe fecharem todas as portas e para que o excluam de todas as reuniões e festas familiares. Mas nem por isso as mancebias são menos frequentes, nem é menor, nas cidades, a concorrência aos sumptuosos bordéis – havendo aqui, ainda por cima, que iludir a vigilância dos Argus das Sociedades contra a luxúria, guardas perpétuos das suas entradas –, nem por isso a vida galante esmorece à míngua de mocidade estouvada e da velhice voluptuosa.
       Acolhido em Amesterdão por uma família ilustre e intransigentemente puritana, a quem fora recomendado, o aspeto dessa sociedade intimidara-me e por ter ingenuamente acreditado na sua sinceridade é que o Kater, mefistofélico e cético, se empenhara, logo no início das nossas relações, em levantar o véu espesso que lhe encobria as mazelas.
       Ele próprio, sem demora e a fim de corroborar com factos as suas asserções, me industriou na forma de, sem escândalo, encetar a existência de gozo e estúrdia que ali se me afigurava inexequível, recomendando-me casas especiais de encontros e denunciando-me como pecadoras criaturas pulcras e, na aparência, inacessíveis.
       Kater julgara ver em mim o refinado cínico a quem uma família escrupulosa festejava como o homem de sãos princípios, e insinuara-se-me no espírito de mil modos no intuito de colaborar nessa comédia, fornecendo-me armas para perpetrar um embuste donde poderia mais tarde resultar descrédito para essa família no seio da qual corria fama que eu entraria – e isso tão-somente porque ela o mantinha, a ele e a todos os da sua raça, a distância respeitável. Mais tarde, desenganado pelas minhas confidências interessadas, e admirado da argúcia meridional com que eu lhe baldava os pequenos tramas, dedicou-me real interesse, «como se eu fora judeu» – explicava justificando-se.
       Kater era um homem de pequena estatura, mas grosso e ágil; a tez e os cabelos no mesmo tom espaçadamente loiro, conservando aos cinquenta anos rosas de baby nas faces, o que concorria para lhe manter a aparência de imarcescível mocidade confirmada pela afetada expressão ingénua da fisionomia, que a um mais detido exame os olhos claros e à flor do rosto, movediços, inquietos, penetrantes, desmentiam. Fervilhava em toda a classe de negócio que presumia lucrativo e trabalhava com paixão, incansavelmente, homericamente.
       A sua ambição crescera à medida que a fortuna lhe aumentara os bens e como pela sua origem menos que modesta de judeu alemão não pudesse aspirar à intimidade dos ricos judeus portugueses, nem da aristocrática sociedade puritana, indígena, sonhava com o primeiro lugar entre os dinheirosos da sua colónia, a qual já era numerosíssima e contava muitos membros opulentos em Amesterdão, embora ali fosse cada vez mais mal vista.
     Fui procurá-lo ao seu escritório, estabelecimento modelar cercado de amplos armazéns onde tudo se movia por eletricidade e formando um enorme edifício de ladrilho, ferro e vidro cujos alicerces nasciam da água, na interseção de dois canais.
       O movimento de mercadorias trazidas e levadas por dezenas de barcas ou fragatas que se acostavam aos armazéns era prodigioso, como fantástica parecia a legião dos empregados que circulavam no edifício ou escreviam abancados, e à boa distribuição de todo este incessante e fadigoso trabalho Kater presidia no seu gabinete de pich-pine, vasto, claro e envidraçado como sala de sanatório, onde constantemente vários secretários tomavam nota do que ele ditava sem perder ocasião de acudir ao seu telefone móvel quando se tornava mister corresponder diretamente às solicitações de algum freguês importante.
       Quando cheguei ao escritório passava das 4 horas, mas ainda o encontrei na febre consequente ao «choque da Bolsa», desfiando o labirinto de ordens e contraordens de que a sua carteira trazia a súmula em sucessivas páginas cheias de abreviaturas feitas numa letra grossíssima e deformada, verdadeira caligrafia de colegial.
       Apertou-me a mão em silêncio indicando-me ao mesmo tempo uma das vastas poltronas que rodeavam o fogão, onde me sentei. Um dos secretários chamou o criado para me servir e Kater continuou no seu trabalho com o ar inspirado de quem «escuta vozes do outro mundo», sibilando e ciciando em holandês, com interrupções em variadíssimos idiomas, conforme a naturalidade do correspondente a quem mandava escrever, sublinhando, destacando, golpeando a frase essencial do seu pensamento.
       Isto durou talvez mais de uma hora, enquanto eu sopeava a minha impaciência fumando um negro e húmido charuto de Bornéu e tomando aos pequeninos goles um grogue quente de velhíssimo Schidam.
       Por fim, despedidos os secretários, voltou-se para mim e sem mudar o tom seco e autoritário que lhe era usual no trato dos seus empregados, interrogou:
       – Então, que temos?...
       – Uma história complicada, mas sobretudo informações.
       – Comerciais?
       – Eróticas...
       – Conte a história e peça as informações.
       – Você tem tempo?
       – Para ouvir histórias dessas... decerto.
       – Pois aí vai...
       Este diálogo e o que se lhe seguiu não impediram o meu interlocutor de continuar a sua faina que, àquela hora, consistia principalmente em assinar, após breve inspeção do respetivo conteúdo, as inúmeras cartas, memoranda e bilhetes postais depostos mecanicamente sobre a sua secretária por uma cesta de vime, volante.
       Contei-lhe resumidamente, e limpa de enfeites, a minha aventura, ajuntando:
       – Agora você que conhece bem a família de Camila vai-me dizer que espécie de gente é...
       – Como é que você sabe que eu a conheço?
       – E sei ainda mais, sei que também teve amores com a irmã mais velha...
       – Vejo que a mais nova é bisbilhoteira a valer e por isso o não felicito eu...
       – Camila nada afirmou de positivo, mas eu é que inferi...
       – Pois tive amores; tive e pouco felizes, embora me custassem os olhos da cara... Com vagar lhos contarei doutra vez...
       – Mas enfim, explique já que classe de gente é...
      – Judeus, meu amigo, gente de muita reflexão, de muito cálculo, de muita prudência e de grande prática do mundo...
       – E são ricos?
       – O pai ganha bastante.
       – Como deixa então andar a filha sozinha e tão mal vestida?...
      – Bem pode compreender que dada a facilidade com que nos reproduzimos, na nossa raça, torna-se indispensável o ser milionário para trazer os filhos, de pequeninos, vestidos com luxo e ainda por cima fazê-los acompanhar de criados graves. Ora o seu Cruteman está ainda muitíssimo longe de ser milionário... Nessas famílias as raparigas só começam a vestir decentemente quando ganham para isso ou quando têm noivo rico... Note que não é costume entre nós dotar as filhas... A propósito, que ideia faz a menina Camila da sua situação financeira?
       – Não sei...
       – No entanto, se o meu amigo já lhe falou na sua própria família e na vida que leva, ela terá concluído que não é pobre.
       – Não, porque lhe tenho dito que sou empregado...
       – Em não fazer nada...
       – ... no consulado espanhol.
       – Justo...
       – Não está mal... Mas veja se mete na cabeça da sua namorada que é pobre...
       – Para quê?
       – Mais tarde saberá. No entanto use da máxima prudência. Sobretudo não escreva...
       – Mas em suma, a família é ou não decente?...
       – Que pergunta, caro amigo, como se houvesse alguma família israelita indecente!
       – Kater, não zombe. Estou apaixonado...
       – Case-se então.
       – Isso é tão demorado, tão complicado...
     – É, mas Camila merece toda a casta de sacrifícios; com certeza não há em Amesterdão criatura tão linda... A irmã mais velha não lhe chegava aos calcanhares e eu fiz por ela barbaridades... Mas adeus. Venha amanhã jantar a minha casa; passaremos o serão juntos e desabafaremos... Está certo?
       – Sim.
       Ao apertar-me a mão, Kater olhou-me fixamente e disse, em tom quase carinhoso de que eu não o julgava suscetível:
       – Não falte amanhã; é indispensável para seu interesse e para seu governo ouvir o que se deu entre mim e a irmã de Camila. Com esses Crutemans toda a cautela é pouca. Adeus.
       A apreensão que estas palavras me causaram foi de pouquíssima dura: eu tinha 25 anos e estava namorado e portanto couraçado contra quaisquer suspeitas que porventura embaciassem a minha confiança na ingenuidade e boa fé de Camila.
   Quanto à respeitabilidade e riqueza da família eram pormenores que nem passageiramente me prendiam a atenção, e se falara nisso a Kater fora para dar explicação plausível à minha vista: no fundo o que eu procurava era encontrar confidente para os meus amores, alguém a quem pudesse revelar sem reserva todos os episódios da minha aventura e que escutasse complacentemente as minhas divagações líricas acerca da heroína.
       Decidi aceitar o convite para o dia seguinte, mas as circunstâncias, precipitando o desfecho à novela, não me permitiram lá ir.
     Quando me encontrei com Camila, à hora acostumada, achei-lhe extraordinária mudança na expressão do rosto, fazendo-me lembrar pelo afogueado das faces e pelo brilho dos olhos o ar de deusa indignada que tomara após a cena dos patins.
      Sem mais preâmbulos contou-me que a família já sabia das nossas relações e encontros, depois, declarando-se com toda a sinceridade de que uma criança é capaz, referiu as ordens terminantes do pai intimando-a a que cessasse imediatamente de me ver, pois do trato de pessoas suspeitas como eu só lhe poderiam vir dissabores e vergonhas, mas ela, marejando-se-lhe os olhos de lágrimas, jurava-me que, fosse eu quem fosse, nunca me deixaria...
      Muitos dias havia já que mais ou menos pela nossa imaginação perpassava a eventualidade de sairmos juntos de Amesterdão, o que se traduzia em projetos inexequíveis, pueris e deliciosos como contos de fadas.      Camila nem mesmo os campos de Amesterdão conhecia; nunca transpusera a área das suas construções, mas na sua alma existia o idílico anseio não do bucolismo rústico mas de vida faustosa levada em parques de árvores seculares, de infinitas alamedas, povoadas de estátuas brancas e jatos de água espadanada, e onde se pudessem colher flores às braçadas...
       Descrevendo-lhe eu uma vez o que era a vizinha Harlém na primavera, quando as suas planícies florescem e se cobrem de infindáveis searas de junquilhos, de túlipas, de jacintos, de anémonas, formando um rescendente e variegado tapete, ela, depois de me obrigar a prometer que a havia de levar ali, ajuntava:
       – E quando lá for hei-de-me despir toda nua e hei de rolar sobre as flores...
       Nesse momento uma onda sufocante de irrebatível sensualidade enchera-me o peito e afogara-me o coração, figurando aquele corpo, que eu sentia debaixo dos vestidos mal talhados e velhos, serpentino, mimoso e firme nas deliciosas curvas da sua incompleta puberdade, movendo-se, nu, na fragrante alcatifa de flores vivas cujos cálices repuxavam por entre os seus cabelos soltos, ou se lhe prendiam nas axilas, ou se lhe enramalhetavam entre as coxas...
       Essa visão deslumbrante nunca mais me largara o cérebro e eu percebia que a não surgir algum imprevisto e insuperável acontecimento me seria impossível resistir por muito tempo aos impulsos dos sentidos...
       Para fugir à tentação, que a mais e mais me perseguia, tratei de evitar encontros em lugares solitários e sobretudo nesses cafés holandeses que um espesso reposteiro divide ao meio, deixando nas trevas grande parte da sala onde os namorados se isolam e se osculam com a liberdade e a desfaçatez de quem realmente estivesse ao abrigo de quaisquer indiscrições.
       Mas de repente o quadro que a sua imaginação compusera e que se me fixara na memória, do seu corpo estendido em leito de flores, assaltava-me os sentidos e nas ondas de sangue que o desejo agitava dentro em mim soçobrava a minha racicionada castidade...
       E de pouco me valia evitar também qualquer contacto de mãos que se enleiam ou de braços que se prendem; na sua presença os meus nervos ardiam e queimavam-me a carne como fios de metal aquecidos ao rubro e na sua ausência cada pormenor do seu corpo que a memória reproduzisse ou a imaginação figurasse ateavam igualmente labaredas de concupiscência.
       Nesse dia, após as confidências e as espontâneas promessas de constância, vieram as queixas e recriminações à família, que assim a deixava andar tão pobremente vestida, expondo-a aos motejos das outras raparigas e, o que era ainda mil vezes mais ultrajante, às declarações e insistências amorosas de certos velhos desavergonhados que vagueiam pelas cidades em busca de pomos verdes... Duma vez, um deles levara o atrevimento até ao ponto de lhe oferecer uma nota de cem florins se ela consentisse em o acompanhar a casa...
       E de repente, Camila, sem se preocupar com a eventualidade de sermos vistos, pois embora fôssemos por uma rua desviada do parque, no mais cerrado da mata de pinheiros, a cada instante encontrávamos gente, de repente, passou-me o braço à volta da cintura, apertou-me estreitamente contra o seu corpo e deitando a cabeça no meu ombro desatou a soluçar entremeando de lágrimas o final das suas confidências:
       – Ah!, eu não sei como te não pejas de me acompanhar – dizia, tuteando-me pela primeira vez –, mal vestida como eu ando... Se não fosses tu, meu amigo, o que seria a minha vida...
       Que pena que eu tenho de não ter ido logo para ti, da primeira vez que te vi!... Olha, vou-te dizer um grande segredo: Se os meus pais me deixam andar sozinha é para ver se algum homem rico se compromete comigo e depois o obrigam a casar, como já fizeram com as minhas duas irmãs mais velhas... Parece que tu és pobre, pelo menos meus pais assim o julgam, e por isso nos querem separar... Mas a mim pouco me importa que sejas pobre ou rico e enquanto me não enxotares, como se enxota um cão, não te deixo...        Vamo-nos embora... Eu quero ir-me embora contigo... Vamos, meu amigo, vamos?...
       A sua face ardente colara-se à minha e as suas lágrimas desfaziam-se-me nos lábios com um delicioso sabor salobro que nunca mais esqueci.
       – Vamos..., quando quiseres..., já... – anuí, absolutamente decidido, na mais completa embriaguez que dali em diante me alheou para tudo que se não relacionasse com o meu amor.
       Como lhe fosse fácil sair de casa logo de manhã cedo, combinámos encontrarmo-nos, no dia seguinte, num café vizinho da Gare Central, e seguir para Dordrecht no primeiro expresso de Berlim que larga às 7¾; naquela estação do ano a essa hora ainda era noite, o que nos permitiria embarcar sem dar nas vistas...
    Selámos o nosso contrato de união eterna com mil longos beijos que nos transmutavam as vidas; pela primeira vez as minhas mãos procuraram os seios e deles se apropriaram com voluptosa sofreguidão: como eram duros e agudos!... Separámo-nos a muito custo e pela obrigação urgente de nos prepararmos para a partida, o que da minha parte exigia cuidados especiais e diligências indispensáveis e demoradas.
       Antes, porém, de a levar a Neuwe Markt, entrámos no grande bazar de Sofia Plein e comprámos o indispensável para tornar decente o seu vestuário; tudo foi depois remetido ao meu hotel, assentando nós que no dia seguinte eu levaria no braço um casaco escuro forrado de peles cinzentas, escolhido por ela – e que a cobriria até aos pés, dando-lhe o aspeto ideado pelas divindades do Norte –, o qual, no café onde nos encontraríamos, ela vestiria e assim poderíamos sem escândalo viajar em primeira classe e procurar um hotel elegante de Dordrecht.
       Dei as voltas necessárias para arranjar uma certa soma de dinheiro, avisei da minha próxima partida para Anvers as poucas pessoas a quem por obrigação restrita o devia comunicar, e feitas as malas enviei para Anvers, onde tinha domicílio certo, a bagagem grossa, ordenando que me expedissem para o Hotel de França, em Dordrecht, qualquer correspondência que me fosse endereçada, mas proibindo terminantemente que revelassem a alguém o meu paradeiro.
      Mal me chegou o tempo para todas estas diligências, de modo que me foi impossível ir jantar a casa de Kater; tão-pouco me pareceu prudente pô-lo ao corrente da situação e assim resolvi partir sem lhe dizer palavra.
       Camila já me esperava, à porta do café, transida de frio, quando eu lá cheguei na manhã seguinte. Pensando na dificuldade de se desembaraçar do casaco velho, viera em corpo e não se atrevera a entrar no café.
       Lancei-lhe o casaco de peles sobre os ombros e pus-lhe na cabeça um boné de astracã preto, que ela também escolhera na véspera, enquanto a beijava, tentando aquecer-lhe com os lábios as faces e as mãos quase geladas...
       Como estivesse nevando e embora esta operação fosse rápida, o casaco e o boné cobriram-se-lhe de flocos brancos, e quando, aberta a porta do café, a luz a envolveu, eu tive a visão de acompanhar um ser ideal, a encarnação de alguma deusa da mitologia escandinava, tão soberana e peregrinamente bela me apareceu; de resto a impressão produzida nos poucos frequentadores que àquela hora se encontravam no café certamente se assemelhou à minha, tão completa se lhes manifestou nos rostos a expressão de admirativo assombro.
      De aí a nada achávamo-nos instalados num compartimento do comboio onde ninguém mais ia e eu substituía-lhe as botas velhas por outras compradas na véspera, atirando as primeiras pela janela com mil preocupações, comicamente exageradas, que lhe trouxeram aos lábios o seu habitual riso de criança, e depois lhe desanuviaram o rosto.
       Camila dividira o farto cabelo em duas tranças que enrolara na cabeça; até ali eu vira-a sempre de cabelo solto e o novo penteado transformara-a: parecia ter vinte anos.
       As linhas simples do boné concorriam para dar à sua fisionomia uma expressão também nova para mim, de serenidade absoluta: compreendi que a minha companheira deixara de ser a criança gentil e descuidada da minha primitiva adoração para se tornar na mulher feita, refletida e decidida a seguir o meu destino, que se me entregava incondicionalmente...
       Quando pensáramos na cidade que nos devia servir para o primeiro poiso, acudira-me à lembrança Dordrecht, sem eu bem saber porquê; considerando porém no caso, durante a noite, resolvi insistir na primeira determinação: o Hotel de França, onde eu estivera já, parecia-me, pela sua tranquilidade e bom serviço, excelente para nos acoitar e como a cidade só era frequentada no verão e àquele hotel não concorriam caixeiros viajantes, de antemão dava por certo que o iria encontrar sem hóspedes. E quem imaginaria que, raptando uma donzela, eu teria o desplante de permanecer na Holanda? Depois Dordrecht é a cidade típica holandesa, silenciosa e plácida, na margem dum rio caudaloso, teatro das mesmas cenas marítimas que nos transmitiram os pincéis de um Cuyp ou de um Salomão Ruysdael, e há ali um exemplar admirável de catedral gótica cujo coro é maravilhoso pelo paganismo das suas esculturas da Renascença, de modo que teríamos para nos acolher o isolamento das grandes naves ogivais e para diversão no anseio místico, indispensável às almas que se prendem, o exame das figurinhas harmoniosas e truculentas que enxameiam o setial...
       Chegámos a Dordrecht às nove horas; a nevada cessara mas substituíra-a um nevoeiro denso, palpável e gelado, que afugentava da rua quaisquer transeuntes ociosos.
       No Hotel de França o porteiro vendo um casal novo com pouca bagagem e conformando-se às pudibundas práticas do país, antes de nos franquear a entrada ao estabelecimento introduziu-nos numa pequena antecâmara para ali sermos interrogados pela gerente, que pouco tardou. Era uma criatura ossuda, fria, suspicaz, vestida de cinzento, à moda das enfermeiras inglesas, que nos fixou com desconfiança mas a quem facilmente inculquei o necessário respeito pedindo-lhe o melhor aposento do hotel que tivesse fogão para fogo de lenha.
       – Tanto minha mulher, como eu – expliquei – detestamos o fogo de carvão...
       – Com efeito – acudiu logo a gerente – o fogo de lenha é muito mais aristocrático, pena é que seja tão caro...
       E após rápida inspeção ao vestuário e ao rosto de Camila que na sua peliça estava realmente elegante e aparentava idade superior à que tinha, a gerente – por cujo olhar, no entanto, perpassava uma chama de cólera recalcada que um desdenhoso estender de lábios sublinhava, como que a exprimir este pensamento: tão nova, tão linda e... honesta; não pode ser... – foi-nos mostrar os quartos disponíveis, a bem dizer todos quantos havia no então deserto hotel, e nós escolhemos aquele onde encontrámos o mais vasto fogão, como se fosse intenção nossa passar em Dordrecht os dias a meter achas no fogão.
       – Que mau tempo que faz! – advertiu a gerente enquanto a criada acendia o fogão na alcova e no salão de que se compunha o aposento. –    Não sei como há quem se atreva a andar na rua...
       – Também nós, se o tempo não melhorar, não temos tenção de sair... – obtemperei sem demora, aproveitando aquela reflexão meteorológica para estabelecer que nos deviam trazer grande provisão de lenha e servir-nos todas as refeições no quarto.
       Pedimos que nos preparassem o almoço e daí a uma hora estávamos à mesa junto ao fogão onde a lenha crepitava alegremente. Camila substituíra o vestido velho pelo que escolhera no bazar e era de cor neutra e corte singelo, sem enfeites, próprio para viagem, moldando-lhe exatamente as harmoniosas formas de adolescente, e movia-se, dava ordens, lembrava alvitres para tornar mais cómoda a nossa instalação, com a elegância, a naturalidade, o engenho de uma consumada dona de casa afeita a fruir os mais requintados regalos de riqueza e de luxo. E enquanto nos serviam o almoço, nada traiu nos seus gestos ou nas suas palavras a criança quase selvagem, loucamente impulsiva e fantasticamente caprichosa que ela na realidade era.
       Mas levantada a mesa, despedido o criado e, após a verificação minuciosa de que nada nos faltaria, corrido o ferrolho, Camila fixou-me um instante e de repente saltou-me ao pescoço, fechando os braços, dependurada ficou, infantil, risonha e traquina, cobrindo-me a cara de beijos... Peguei nela ao colo, levei-a para a alcova e sentei-a numa vastíssima poltrona de veludo verde escuro, ao lado do fogão, de cuja lareira, cheia do brasido de lenha, subiam grandes chamas que alumiavam o aposento ao rés do chão, formando uma zona ardente onde estava a poltrona, e deixando-lhe a parte superior em completa obscuridade...
       Ajoelhei e comecei lentamente a despi-la...
       Não há palavras que descrevam as maravilhas do seu corpo, a sua carne rosada e firme desmaiando, nas curvas, no tom mate de açucena; os pés de estátua grega; o ventre polido e retraído, nascendo das coxas roliças como um escudo de prata fosca e partindo-se, no remate, para inflar nos dois agudos pomos a que as vacilantes chamas do fogão davam reflexos iriados; e os longos braços a um tempo frágeis e marmóreos!...
       Os meus lábios cobriam sofregamente a carne que aparecia enquanto as mãos teciam em volta do seu corpo uma apertadíssima rede de carícias...
       Ela tudo aceitava, como se fosse o devido preito à sua beleza peregrina e quando lhe soltei o cabelo ergueu-se para que eu a pudesse adorar na plenitude da sua formosura...
       Sem dizer palavra tomei o casaco que ela pusera sobre um próximo sofá voltado com a peliça para fora, estendi-o junto ao fogão; depois deitei-a nas peles e naquela atmosfera candente, sentindo quase as labaredas lamberem-me a carne, penetrei-a demoradamente, num tal espasmo de gozo que ainda hoje o recordo com um característico e inconfundível estrangulamento do esófago e uma fulguração dolorosa nas entranhas!
       Nesse dia não saímos do quarto: o nosso contínuo chalrar entremeava-se de carícias. Construíamos o futuro da nossa vida sem alusão alguma ao passado; não creio que jamais dois seres humanos fruíssem horas de enlevo superior ao nosso, horas assim que resgatam as torturas de muitos anos de sofrimento e miséria...
       Camila confessou que tivera de antemão como certo que eu a despisse e todo o seu cuidado na véspera, já que não podia vestir-se com elegância, fora preparar o corpo com a pulcritude necessária, purificando-o para o delicioso sacrifício. Para isso levara horas no banho...
       Ao dia seguinte recebi um bilhete de Kater, já recambiado de Anvers, pouco mais ou menos assim: «Esperámos ontem baldadamente o meu amigo para jantar e hoje a minha surpresa foi grande quando no hotel me disseram que tinha abalado repentinamente. O que foi? já lhe não mereço confiança bastante para me interessar nas suas aventuras?»
       Esse Kater, com os seus manejos envolventes, sempre me parecera um personagem dúbio a quem inquestionavelmente seria perigoso confiar segredos industriais ou sentimentais; mas eu devia-lhe serviços valiosos, provas indiscutíveis de simpatia e até auxílio desinteressado em lances de muito aperto.
       Demais era uma criatura que mau grado a sua açambarcadora febre comercial mostrava lampejos estéticos. «Eu dava tudo para ter pintado os Noivos Judeus de Rembrandt» – declarava-me ele uma tarde em que nós, na praia de Scheveningue, sugestionados pela doçura nacarada e translúcida da atmosfera, relembrávamos as obras-primas dos incomparáveis coloristas holandeses, a quem o tom de pérola serve de luz e os liga a todos em próximo grau de parentesco artístico. Com tal sinceridade e tão espontaneamente lhe escapara esse grito de alma que, a meus olhos, rasgara na sua inteligência uma profunda e vasta clareira de poesia...
       Verdade seja que o aludido quadro, duma tão penetrante subjetividade na sua aureolada execução, poderia prestar-se a pretensões de proselitismo religioso, visto como os protagonistas pertencem à seita israelita, e impressionar especialmente por esse lado o espírito do espectador correligionário, mas no meu conceito o grito fora ingénuo e irreprimível, desabafo por onde definitivamente eu entrevira o traficante prezando acima do lucro material a glória imarcescível de produzir uma obra de arte empolgante e emotiva.
       Quando eu saíra de Amesterdão também pensara naqueles mesmos Noivos judeus que me haviam acudido à lembrança não para ilustração estética do lance aventuroso mas para tornar apreensivas algumas das suas futuras e inevitáveis passagens. Na pintura, que deslumbra a vista pela sua intensidade luminosa, os dois melancólicos personagens retratados exibem trajos de gala duma tão faustosa ornamentação que lembram o vestuário das madonas espanholas ou italianas, coisas seculares, expostas à poeira e dela entranhadas, sempre dum asseio duvidoso; com a má fama que pesa sobre a raça israelita, no capítulo higiene, era-me impossível figurar aquele amoroso casal liberto das suas pomposas vestes e restituído à ingenuidade da nudez paradisíaca sem constatar que a sua carne clamava por banhos... Obsessão trasladada para o meu caso!...
       A surpresa de encontrar a minha Camila igualmente venusta, nítida e pura, levou-me à plenitude da exultação e ligando este ensartado de sensações disparatadas ao conceito de Kater sobre o quadro de Rembrandt acudiam-me rebates pueris de gratidão aos dois, negociante e artista, avigorando-me a confiança no primeiro.
       E como seja também indispensável à mocidade cantar e contar as suas alegrias, sobretudo se elas são de origem amorosa, eu sem mais hesitações nem reflexões respondi ao bilhete de Kater dando-lhe conta da minha situação e revelando-lhe o meu atual paradeiro...
       O idílio seguiu o seu curso, no mesmo grau inebriante de intensidade voluptuosa com que o havíamos iniciado. Sobreveio uma tormenta de neve, tornando as ruas intransitáveis e fornecendo-nos pretexto plausível para não abandonarmos o nosso aposento donde saímos apenas duas ou três vezes para comprar flores que eram o enlevo de Camila e a minha ruína, tão leoninamente caras se vendiam naquela época em Dordrecht... A compra das flores deu mesmo azo a que a minha amante soltasse uma das mais encantadoras frases que me acariciaram a alma.
       Camila, ao invés da gente da sua raça, dir-se-ia que não dava importância alguma ao dinheiro, cujo valor parecia ignorar absolutamente, mas na loja da florista, em uma das ocasiões em que ali fomos e a encontrámos maravilhosamente fornecida, feita a escolha – a que procedia com delicadíssimo instinto de beleza, juntando em fartos molhos, de um variegado
prodigioso, os junquilhos e as anémonas das estufas holandesas, com os cravos e as rosas de Nice que custavam mais de um florim cada um, vendo-me tirar da carteira várias notas para pagar a conta, fixou-me espantada, perguntando:
       – E para que é tanto dinheiro?
       – Para pagar as flores, filha...
       – O quê, esta mancheiinha de flores?... Não, não quero... – E fez o gesto de as atirar sobre o mostrador, mas com os olhos já tão cheios de lágrimas, tal uma criança a quem roubassem o seu brinquedo preferido, que eu acudi, sem demora:
       – Camila, não sejas doida... Que te importa a ti o dinheiro que as flores custam se elas te causam um tão grande prazer?...
       E ela retomando o molho das flores, que apertou de encontro ao peito, puxou-me para si e murmurou-me ao ouvido:
       – Meu querido amiguinho, perdoa-me; nunca me lembro que tu és pobre...
       Ao sexto dia à noite, quando nos sentávamos à mesa para jantar, trouxeram-me um telegrama de Amesterdão, sem assinatura mas evidentemente obra de Kater, visto ninguém mais ali saber o meu endereço, nos misteriosos termos seguintes: «Se lhe aparecer tomador à sua Vénus oriental largue-a sem resistência; em todos os casos jure que não dispõe de meios bastantes a permitirem-lhe o luxo de possuir obras de arte de tamanho valor.»
       A redação ambígua deste aviso, cujo sentido exato me foi impossível discriminar, embora percebesse a sua de resto muito clara referência a Camila, irritou-me e desde logo amaldiçoei a leviandade com que me abrira ao Kater e o escolhera para meu confidente.
       Fiquei preocupado por um indefinido mas persistente pressentimento de desgraça próxima, nuvem negra a despontar no horizonte e ensombrando já todo o céu da minha felicidade.
       Camila, a quem não escapou a mal disfarçada contrariedade, insistiu pela sua explicação e eu dei-lha cabal, relatando quanto se passara com Kater desde o dia em que o procurara no escritório.
       – Foi grande imprudência – advertiu ela – teres-lhe revelado onde estávamos... Esse Kater é uma criatura perigosa de quem meus pais, como lhes ouvi dizer mais uma vez, temem não sei que inevitável revindicta... Irá ele denunciar-nos? É quase certo e o melhor será sairmos de Dordrecht amanhã cedo.
       Aceitei o alvitre, decidi seguir ao dia seguinte para Bruxelas onde me seria fácil pôr Camila a bom recato, ficando eu em Anvers – e portanto, graças à proximidade das duas cidades, nas condições de passar as noites em sua companhia, durante o mês ou mês e meio que julgava o suficiente para a completa liquidação dos negócios que exigiam a minha presença no Norte da Europa.
      Tomada esta resolução, e como ela bastasse a livrar-nos de qualquer aperto, jantámos com a alegria e o apetite próprios de quem está na pujança da vida e em quarto crescente da lua de mel.
       Eu mandara pôr a mesa na alcova cujo fogão além de elegante era vastíssimo, permitindo queimar grandes porções de lenha e conservar o antro ateado em labaredas.
       Estávamos à sobremesa, entretidos a comer gengibre de conserva; Camila escolhia na compoteira as talhadas mais curtas dos apimentados frutos, metendo-mas na boca para vir com os dentes partir a parte que lhe pertencia, quando bateram à porta da antecâmara.
       – Entre, quem é – acudi prontamente, supondo que fosse algum criado.
       Ato contínuo a porta abriu-se e a voz grossa de um desconhecido soou, gritando em tom áspero:
       – Camila, Camila, onde estás?...
      – Meu pai! – exclamou Camila, empalidecendo horrorosamente e caindo sobre uma poltrona com o rosto escondido nas mãos.
       Logo entraram à alcova três indivíduos: o pai de Camila, arganaz de perfil duríssimo, suíças negras, levemente estrábico; um rapaz bem posto, hercúleo, risonho e imberbe, que, por ser a variante, em loiro, das feições de Camila, fácil me foi adivinhá-lo seu irmão; e um personagem volumoso, linfático e sibilante, tresandando a polícia... respeitável.
       O Sr. Cruteman, fingindo que me não via, dirigiu-se à cadeira onde a filha permanecia na mesma atitude de prostração e soltando-lhe com violência o rosto das mãos começou a falar-lhe em holandês, desabridamente.
       No entanto o irmão entabulava comigo, em francês achavascado, uma conversa fútil e variada, a respeito das diversões que a Holanda oferecia no inverno à sociedade elegante, como se estivéssemos ao «chá das cinco», e o representante da autoridade, acomodando-se no sofá, em pose de retrato oficial, as mãos estendidas e cruzadas no castão da bengala, circunvagava pelo aposento o olhar morrediço coado pelas polpudas pálpebras mal cerradas...
       O meu muito imperfeito conhecimento da língua holandesa impedia-me de decifrar exatamente a irritada diatribe que a meu respeito o Sr. Cruteman impingia à filha, catilinária de baldados efeitos depressa mudada em veemente exortação... Mas não havia razões que convencessem a minha namorada nem ameaças que a demovessem do seu propósito; ela persistia na sua imobilidade passiva, sem levantar os olhos do chão, até que, erguendo-se impetuosamente espicaçada por uma longa e derradeira frase proferida em tom desprezível e sublinhada raivosamente, cravou em mim aquele mesmo olhar fulgurante da cena dos patins e gritou em francês:
       – O meu dever é seguir o meu amante se ele quiser casar comigo.
       – Mas decerto, casarei... E quem é que o duvida?... – protestei com arrebatamento.
    A tão perentória declaração correspondeu o Sr. Cruteman, empertigando-se desdenhoso e falando destarte em excelente francês correntio:
       – Dispenso, em absoluto, a glória de semelhante aliança: (irónico) tenho-o na conta de um cavalheiro perfeito, que soube respeitar a honra da minha filha, mas, repito (secamente) não consentirei nunca em dar-lhe a minha filha, embora a leviandade e a imprudência com que ela se lhe confiou merecesse exemplar castigo e outro melhor não seria fácil encontrar do que entregar-lha... (malicioso) Meu caro senhor: aqui, na nossa pequenina Holanda, quando pretendemos casar começamos por garantir às nossas noivas os indispensáveis meios de subsistência.
       – Mas eu... – atalhei para protestar que, embora filho família, me encontrava em situação de manter a mulher e a prole por mais numerosa que fosse. O Sr. Cruteman, porém, sem me dar tempo a coisa alguma concluiu desabridamente:
       – O Sr. Mullen – indicava o homem linfático – tem ordem de o prender tão depressa eu o requisite. Minha filha vai comigo para casa e espero que o senhor não terá a audácia de a seguir a Amesterdão, aliás usarei dos meios que a lei holandesa faculta aos pais de família para resguardar as filhas da cobiça dos sedutores sem escrúpulos e sem cheta.
       – O senhor insulta-me e aviso-o de que o não faz impunemente... – clamei eu, crescendo para ele, mas já o filho punha a peliça nos ombros de Camila e tomando-a pela cinta a ia arrastando direito à porta. Vendo que ela não oferecia a resistência esperada em lance de tão doloroso constrangimento, a minha pundonorosa exaltação desfez-se dando apenas lugar ao amargurado pressentimento de que a minha amante me abandonava.
       – Camila! – gritei desesperado –, pois tu consentes que assim nos separem!...
       Corri para ela de braços estendidos, no auge do frenesi, disposto a arrancá-la à força das mãos do irmão, mas o homem linfático, mais lesto do que seria possível imaginar-se, interpondo-se, prendeu-me com prodigioso vigor de encontro ao peito e num francês absurdo embora compreensível, que a sua voz de falsete tornava grotesco, articulou placidamente a fala incumbida ao seu papel de comédia, enquanto os Crutemans desapareciam:
      – Peço-lhe encarecidamente que me não obrigue a empregar violências tão contrárias e que tanto repugnam ao espírito liberal da pátria holandesa.
       Tive-o de guarda, silencioso mas vigilante, pelo espaço de uma hora contada no relógio, finda a qual se despediu cortesmente recomendando-me que saísse da Holanda sem demora, pois a mais elementar prudência assim o aconselhava, para escapar a qualquer «investida cúpida do ignóbil Cruteman» – foi textualmente a sua frase.
       Durante essa hora de agudo e desvairado sofrimento, no tumultuar de sensações que me encandeavam o cérebro, entre as quais o súbito despego de Camila fulgurava, envolvendo-me o coração de línguas de fogo, sem que eu pudesse achar-lhe explicação plausível, arquitetou-se-me no espírito, quase inconscientemente, mas lógico e decisivo, o mais formidável requisitório contra o Kater, a quem atribuía todas as culpas, e sobre essa impressão escrevi-lhe uma carta onde os ultrajes pululavam e feriam como se fossem vibrados na ponta de um chicote...
       Um quase nada aliviado pela aparente descarga de bílis represada, entrou comigo, a apolear-me cruelmente, a irresistível tentação de voltar sem demora a Amesterdão, que mais não fosse para me aproximar de Camila, percorrer as ruas por onde havíamos passado juntos, contemplar a janela do seu quarto, apalpar as paredes da sua casa... Consultei o horário: tinha expresso daí a dez minutos e a estação era próxima. Parti.
       O que foi a angústia do trajeto, a ânsia de chegar, o desespero dos infinitos minutos contados um por um, de faces coladas à vidraça gelada, perscrutando na negra noite o lençol de neve que tudo cobria!... Depois a agonia dos derradeiros mas infindáveis instantes, à chegada a Amesterdão, na corrida febril do comboio, silvando estridulamente, lançado a todo o vapor sobre pontes que pareciam submergidas, ou através de cerradas matas de mastros de navios ou rompendo a massa imponente da aglomeração de edifícios, as pinhas de casario, enormes, com a fachada inteiramente iluminada pelo xadrez das suas inúmeras janelas, e logo soltando-se numa inesperada superfície de gelo, mas sem parar nunca, sem nunca chegar ao almejado destino, até à súbita investida na colossal e deslumbrante redoma de cristal da gare envidraçada, retumbante de clamores exagerados e por fim o salto para o cais, salto de louco com o comboio ainda em movimento, e a fuga cega direito aos sumidouros da saída, e os braços do homem linfático abertos na minha frente para me colherem num amplexo férreo, e a sua voz descolorida a segredar-me: – Já o esperava... Virtualmente está preso mas consentirei que volte a Dordrecht no próximo comboio, aquele que ali está e vai partir; se me prometer sob a sua palavra de honra que amanhã regressa a Anvers e não torna este ano à Holanda.
       Prometi e segui para Anvers.
      Ao dia seguinte, em vez dos padrinhos de Kater cuja visita me parecia consequência inevitável à minha carta, recebi dele o seguinte bilhete:
       «Criança que tão mal corresponde ao mais assinalado serviço de quantos a sua gratidão jamais poderá conhecer!... Aí vou proximamente e então nos explicaremos.»
       O meu pensamento, na obsessão de resolver o crudelíssimo enigma que a completa metamorfose de Camila representava, perdia-se em labirinto de conjeturas a mais e mais intrincado. Eu levava horas a escrever-lhe cartas apaixonadas, suplicantes, ameaçadoras, que ao fim de oito dias me foram devolvidas, emaçadas nos seus sobrescritos intactos, e apostiladas pelo próprio punho da minha amante com estes dizeres: «Devemos obediência a nossos pais e os meus proíbem-me de continuar as relações que tão levianamente encetámos. Esqueça-me como eu julgo que também já o esqueci.»
       Nestas linhas, para maior confusão minha, havia borrões que podiam ser de lágrimas!
       No entanto a irritação contra o Kater decrescera à reflexão de que, se fosse verdadeiro o amor de Camila, nenhumas razões a impediriam de me comunicar os motivos pelos quais o pai recusava consentir na nossa união e pouco a pouco era ela quem as minhas recriminações carregavam de maiores culpas. Lembrava-me a sua ingénua confiança, os seus raptos de amorosa incitação, os breves dias de Dordrecht que renasciam na deleitosa miragem do seu corpo, e tudo concorria para me exacerbar a amargura...
       Até os termos ridículos da minha carta ao Kater me exasperavam, sobretudo ao confronto da sua réplica pouco menos de carinhosa.
       Sem embargo acolhi-o de má sombra quando passadas três semanas ele me apareceu em casa risonho, expansivo e cordial como nunca o vira.
       – Não se penitencie nem perca tempo em busca de inúteis desculpas – começou sem mais preâmbulos –, eu sei o que são desesperos amorosos, na mocidade, e calculo o grau de sofrimento que lhe causará a perda de uma formosura tal como a inigualável Camila... Almoçaremos no restaurante Bertrand de cujos petiscos venho faminto. Nós na Holanda não sabemos o que é comer e ainda menos o que seja beber: precisamos de vir à Bélgica para nos desenfastiarmos... Trago na lembrança um menu com petiscos tais como Trimalcião algum, civilizado, jamais se repimpou...
       Fomos. A refeição correu desanimada, senão triste; nem o Kater sentia o apetite que apregoara, nem eu conseguia constranger-me até ao ponto de sorrir. Serviram-nos peixe com vinho do Reno da célebre marca «Leite da mulher amada» de uma preciosíssima colheita; era casualmente o mesmo que eu tomava em Dordrecht na companhia de Camila, e este, conquanto fosse bem inferior na qualidade àquele que o Kater me oferecia, deixara-me na vista e no paladar uma inextinguível e incomparável impressão de flavor perfumado.
       À sobremesa o Kater encetou o tema das explicações:
      – Meu pobre amigo... e chamo-lhe pobre porque o vejo assim amargurado, quando feliz seria o adjetivo mais próprio: meu pobre amigo, que abençoada estrela a sua para o conduzir ao meu escritório em ocasião tão propícia: se eu ignorasse os pormenores da sua aventura, hoje, o meu amigo ou estaria jazendo na húmida palha de um cárcere holandês ou seria o genro de um dos mais completos bandidos que pisam as ruas de Amesterdão. E olhe que ali os há de primeiríssima água. Mas se fosse genro apenas... Seria ainda devedor de soma importante ao mesmo malandrim que o sujeitaria de pés e mãos e de forma a não lhe permitir nunca mais qualquer veleidade de independência... Saiba que o Sr. Cruteman teve logo de começo conhecimento das suas relações com a filha e porque o via elegantemente vestido, alojado em hotel caro e na convivência de gente rica, supô-lo rico também e determinou apanhá-lo para genro. Longe de contrariar a filha deu-lhe ampla liberdade e esperou serenamente os acontecimentos. Ao que parece ainda tentou industriar a menina para com maior segurança alcançar o seu fito, mas Camila amava-o e no instintivo receio de o prejudicar se baldaram as lições do pai. Dois dias antes da sua fuga ele veio estar comigo na Bolsa e perguntou-me se eu o conhecia.
       – É para fazer negócio? inquiri, farejando alguma tramoia. – Não, respondeu, julgo que pretende uma das minhas filhas... – Aqui ainda a sua boa estrela interveio na resposta que maliciosamente lhe dei: – Acautele-se; parece-me que a família é pobre e ele não tem modo certo de vida. Se quiser posso informar-me.
       – Nisso me obsequiaria particularissimamente.
       Ficámos em que eu telegrafaria ao meu correspondente de Lisboa pedindo prontas informações, e ele, naturalmente de orelha caída, foi de ali para casa proibir a filha de o ver até nova ordem. Nunca pensei em pedir tais informações e estava nisso quando recebi a sua visita no meu escritório. Devo adverti-lo de que me sentia um tanto ou quanto magoado julgando a sua reserva propositada, mas naquele dia convenci-me de que ela provinha somente da falta de oportunidade azada a confidências, e resolvi passar a noite seguinte na sua companhia para repousadamente concertarmos algum plano de defesa eficaz... Mas o meu amigo desapareceu e sem demora o pai de Camila me veio comunicar que desaparecera também a filha. Observei:
       – Fugiram os dois, juntos... – Calculo que sim. – Pois, Sr. Cruteman, ruim negócio esse!... – Já recebeu as informações? – Ainda não, mas tudo me leva desde já a presumir que serão péssimas... – Quando julga recebê-las?... – Depois de amanhã, talvez... – E sabe onde eles param? – Nem sei, nem suspeito. – Recorrerei à polícia que facilmente os descobrirá e recebidas que sejam as informações procederei... – Prometi transmitir-lhe as notícias esperadas de Lisboa, tão depressa as tivesse, e medindo o tremendo precipício de miséria e vergonha a que a mão daquele facínora o podia atirar, não hesitei, meu amigo, em servir-me de um expediente talvez indigno mas em todos os casos salvador: telegrafei em cifra ao meu correspondente pedindo-lhe que, pela mesma via, me desse aviso da falência de seu pai calculando um passivo importante e o ativo nulo...
       Aqui, ao meu gesto impulsivo de irado protesto, acudiu Kater:
       – Não me interrompa: seu pai é um proprietário opulento, de crédito inabalável no seu país e que nada teria a perder malquistado na Holanda pela tuba infamada de um Cruteman...
       Seu pai seria o primeiro a agradecer-me. Mas adiante. Recebido o telegrama de Lisboa, chamei o Cruteman ao meu escritório e aterrorizei-o com a perspetiva da desonra improdutiva da filha... Dos mais íntimos recessos da alma do vilão saiu este irreprimível grito atroz: – E eu na apertada situação financeira em que atualmente me acho, que tanto contava com ela, a mais linda de todas as minhas filhas!... – Sob a promessa de que o não perseguiria judicialmente revelei-lhe o seu endereço e arranjei-lhe o empregado da polícia que o acompanhou e a quem deram, superiormente, instruções especiais para o deixar fugir caso a situação se complicasse até ao extremo de o Cruteman exigir a sua prisão. Porque, devo confessar-lhe, temi da sua ingenuidade, e mais, da sua vaidade meridional, algum lance que baldasse o meu plano...
       – Como podia ser isso?
       – Ora! Bastava que o meu amigo, em vez de perder tempo em falar ao coração de Camila, gritasse perentoriamente ao pai: – A minha família é rica e eu tenho dinheiro bastante para sustentar a sua filha e a Você se necessário for; se o não acredita dê-me oito dias de espera e eu lho provarei... – Mas o meu amigo estava enamorado e afortunadamente só cuidava de galvanizar o coração da sua amada, que o peçonhento sopro do progenitor envenenara, dissecara, e conspurcara. Para a sua amada tornou-se evidente o logro em que caíra desde que o amigo deixou passar sem protesto a acusação de pobreza... O epílogo da farsa forneceu-o, tão característico ou mais do que seria lícito desejar, o seu sogro de mão esquerda, apresentando-me a conta dos gastos feitos na ida a Dordrecht pela importância de 168 florins – e aqui tem o recibo – quando o máximo que despenderia seriam 30 florins. Agora consulte a consciência e diga se lhe prestei ou não serviço arrancando-o das garras daquela gente...
       – Mas Camila...
       – Sabe quanto me custou a mim a irmã mais velha, que o próprio pai me lançou nos braços?... Muito mais de cem mil florins que foram como manteiga em focinho de cão, pois o tal Cruteman joga na Bolsa e perdeu-os sem demora...
       – Mas Camila... Nunca me será possível esquecê-la...
       – Não seja piegas... – rematou autoritariamente o Kater.
       Nesse ano não voltei à Holanda e no ano seguinte, das várias vezes que fui a Amesterdão, nenhuma notícia colhi a respeito de Camila... Só três anos depois é que a vi, e pela derradeira vez, ao canto do Rokin, mesmo em frente ao edifício da Arti et Amicitiae.
       Instintivamente os nossos olhos encontraram-se e prenderam-se numa devoradora chama de sensualidade; o seu rosto empalideceu e fez-se cor da cal das paredes – dos países onde elas se caiam.
       Mas tão elegante, luxuosa e primorosamente vestida me apareceu, que somente a reconheci quando ela ia longe, confundida na multidão de Kalverstraat. Acompanhava-a outra senhora que devia ser sua irmã.
       Ainda pensei em segui-la: mas para quê? Além de tudo o mais eu andava então absorvido por outros amores...


Sem comentários:

Enviar um comentário

Não deixe de comentar, o seu comentário será sempre bem vindo