Sobre o Erotismo - Reflexão de Ana Alexandra Carvalheira - BIOGRAFIAS ERÓTICAS
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Sobre o Erotismo - Reflexão de Ana Alexandra Carvalheira


"Vivemos tempos de grandes transformações sociais na forma de viver as relações amorosas e sexuais. São tempos frenéticos, cheios de canais de comunicação que se abrem por todos os lados. 

A Internet é uma ferramenta social ao serviço do amor e do sexo e o imediatismo tornou-se um valor fundamental. O amor é hoje um bem de primeira necessidade e a realização sexual é desejada e obrigatória mas, ao mesmo tempo, os laços amorosos tornaram-se frágeis. Zygmunt Bauman fala do “amor líquido” e aponta o dedo ao medo de estabelecer relações de longa duração e à tendência para as relações fugazes, superficiais e com pouco compromisso. 

O Dr. Francisco Allen Gomes constata uma certa “desregulação da sexualidade à semelhança do que aconteceu com a economia e com a estrutura social”. Diz que as interdições e os tabus se desmoronaram e a diversidade sexual é a regra. Estas análises levantam muitas questões. Tenho pensado sobre o impacto de tudo isto no erotismo. Quais são as ameaças ao erotismo nestes tempos modernos?

Antes de mais, de que estamos a falar quando falamos de erotismo? A palavra “erótico” é usada de tantas formas. Falamos de fantasia erótica, estímulo erótico, desejo erótico, inteligência erótica, só para dar alguns exemplos. 

Há 21 anos, quando comecei a minha formação em sexologia, o tema da minha monografia (nesse que foi o primeiro curso de pós-graduação da SPSC) foi o Erotismo. Não fazendo ideia onde me estava a meter, foi o ano em que li mais poesia, romances e filosofia. A dada altura comecei a fazer perguntas aos amigos. 

O que é para ti o Erotismo? Dá-me um exemplo. E os exemplos chegaram: “Uma camisa de seda cujo decote a torna ainda mais seda”; “Um sussurro ao ouvido, que quase toca sem tocar”; “O movimento do cruzar de pernas de uma mulher. Tem que ser lento, e a perna que cruza deve passar muito próximo da outra, que se inclina ligeiramente”; É acordar num sótão de madeira com cheiro a maçãs”. Com este exercício cheguei à primeira ideia. 
O erotismo é um fenómeno individual, é como as impressões digitais, cada um tem o seu.
Vinte anos depois e porque sou investigadora, fui pesquisar sobre erotismo nas bases de dados, a ver o que nos diz a ciência do sexo. E comprovei o que já desconfiava. A pesquisa nas revistas científicas internacionais no campo da sexualidade revelou apenas 153 artigos nos últimos 40 anos, ou seja, nada. 

Mas o que se passa? Por que razão os investigadores da sexualidade não se interessam por este tópico absolutamente central para a compreensão da sexualidade de homens e mulheres? Dá vontade de perguntar, em jeito de provocação, o que é feito do erotismo dos investigadores do sexo? O que sim, é certo, é que nas bases de dados da ciência, o erotismo está espalhado por uma diversidade de áreas, mas sobretudo encontra-se na literatura e nas artes. 

Afinal, quem sabe de erotismo são os artistas, os poetas e os escritores. 

Vejamos então.
Em 1957, Georges Battaille, escritor e antropólogo francês, publica L’Erotism, onde afirma que a essência do erotismo resulta de uma inextrincável associação do prazer sexual com o interdito. Diz ainda que “um homem que ignora o erotismo é tão estranho quanto um homem sem experiência interior“. É uma análise complexa, mas que oferece esta componente do erotismo, o interdito.
Ainda em França, o psicólogo Bernard Muldworf escreveu Vers la Société Érotique (1972), livro em que apresenta uma definição muito interessante. O desejo projeta no exterior uma trajetória que termina em pontilhado, cujos vazios constituem o erotismo. O desejo precisa do erotismo para se manifestar. E os sinais eróticos são os elementos mobilizadores do desejo.
Vinte anos depois, Octavio Paz, escritor e poeta mexicano, prémio nobel da literatura, escreve um ensaio riquíssimo sobre o amor e o erotismo, com o título La Llama Doble (1993). Neste ensaio afirma que o erotismo é a poética do corpo, o testemunho dos sentidos. Os sentidos tornam-se servos da imaginação e deixam-nos ver o invisível e ouvir o inaudível. O erotismo é aquilo que a imaginação acrescenta à natureza. Octavio Paz aporta mais dois elementos para a compreensão do conceito: os sentidos e a imaginação.
Recentemente, Esther Perel, uma famosa psicoterapeuta com uma longa experiência clínica e em diversos contextos culturais, fala de “inteligência erótica” e da sua importância para manter o erotismo no casal. Diz que os ingredientes são o mistério, a curiosidade, a brincadeira e a novidade, mas o ingrediente central é a imaginação. Diz que crise do desejo é muitas vezes uma crise da imaginação. Em 2006 publica Mating in Captivity, onde explica a importância da reconciliação do erótico com o doméstico. 

Recomendo vivamente esta análise sobre o investimento fundamental no erotismo do casal. Mas já antes John Bancroft falara da imagery erótica (1989), como uma capacidade de gerar experiências imaginárias.
Julgo que chegamos aos componentes essenciais do Erotismo que nos permitem uma aproximação ao conceito. 

A componente sensorial, que inclui os cinco sentidos e que constitui o substrato biológico. A imaginação, que funciona como um palco onde criamos, (re)elaboramos e ensaiamos tudo aquilo que pode mobilizar o desejo sexual. O erotismo é essa espécie de combustível do desejo. Outros elementos que o constituem podem ser a transgressão, a novidade, a surpresa e o jogo.
Nesta rápida deambulação é incontornável uma referência a Francesco Alberoni, que nas várias publicações na década de 80 tão bem explica as diferenças de género no erotismo. O masculino, como sendo um erotismo descontínuo, na forma de episódios, mais fragmentado, menos elaborado, “um interlúdio erótico numa agenda carregada” (Alberoni, 1986). 

E por outro lado, o erotismo feminino mais baseado na componente emocional, menos visual, menos sensorial, com um imaginário elaborado na forma de narrativa. 

A mulher também admira a beleza do corpo masculino mas, para aquele corpo se tornar erótico, para acender o desejo dela, aquele corpo tem que prometer intimidade amorosa. 

Mas será que esta dicotomia erótica ainda faz sentido? Ainda é assim neste tempo de grande liberdade na perseguição do prazer sexual e a caminho da igualdade de género? Continuamos a ter dois erotismos?

Com o objectivo de responder a esta questão, levei a cabo um estudo qualitativo onde usei grupos focais, para perceber as componentes do erotismo nos jovens. 
Fizemos 11 grupos com uma amostra total de 78 homens e mulheres. Lançava a pergunta e registava a resposta dos elementos do grupo, que gerava uma energia estimulante e motivadora de discussão. 

Basicamente emergiram quatro componentes principais: a transgressão/interdito (e.g. sexo num local proibido), a novidade (e.g. a surpresa, o inesperado, sair da rotina), o sensorial (e.g. beijos, cheiros, determinada forma de tocar), e a imaginação (e.g. fantasias). 

Outros elementos foram características individuais (e.g. inteligência, sentido de humor), o jogo (role-play, fingir que se é isto ou aquilo), domínio/submissão (dominar a cena sexual, mas também ser dominado), e a comunicação (e.g. determinadas conversas, mensagens por telefone). 

Com base neste estudo e na observação clínica, eu diria que a dicotomia erótica perdeu força. 

Faz cada vez menos sentido falar de diferenças de género. Antes analisar as diferenças entre as mulheres, dentro do grupo das mulheres, e as diferenças entre os homens, sem nunca perdermos de vista a ideia da diversidade, claro está. 

O erotismo resulta da experiência e cada um vai aumentando os seus ficheiros eróticos, numa espécie de património fundamental para a sua sexualidade. 

E muitas vezes as dificuldades sexuais na vida adulta resultam de uma certa pobreza neste património. Digamos que algumas pessoas têm os ficheiros eróticos praticamente vazios. Mas sobre a deserotização há muito mais a dizer.
Considero que vivemos um tempo que traz ameaças ao erotismo. Por um lado, a banalização generalizada do sexo, para a qual a comunicação social tem contribuído. Por outro lado, a esfera pública tomou espaço à esfera privada, à do indivíduo e à do casal. 

A realização também a nível social impõem-se (para além do profissional, familiar, amoroso e sexual) e há uma certa pressão para haver maior exposição pública. 

O espaço privado perdeu importância para o casal. Valores como o imediatismo, o poder da imagem e da informação que chega por tantos canais e é preciso processar, tomaram a dianteira. 

Mas o erotismo precisa de tempo e de espaço. Outra ameaça ao erotismo é uma certa desconexão com o corpo. Vivemos mais desligados do corpo, com menos sensorialidade. 

A vida acontece nos ecrãs, longe da natureza e isto tem consequências na nossa consciência e relação com o corpo, onde supostamente sentimos os estímulos eróticos. O corpo anda esquecido neste sentido. 

Lembramo-nos dele para atingir os cânones de beleza impostos socialmente mas, muitas vezes não o sentimos. Não somos o corpo. 

Octavio Paz disse que o capitalismo dessacralizou o corpo e transformou-o num instrumento de marketing.
Por tudo isto, venho em defesa do erotismo. Um erotismo que nos permita uma sexualidade mais livre e completa. Um erotismo que seja uma âncora na relação amorosa. E para quem faz sexologia clínica, afirmo a necessidade de trazer o erotismo para a Terapia Sexual.
A reflexão de…
Ana Alexandra Carvalheira, psicoterapeuta, professora auxiliar no ISPA, investigadora no William James Center for Research. Ex-Presidente da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínicaaqui 




2 comentários:

  1. Já ando a dizer que isto é um facto há muito tempo!

    O mundo virtualizado só vai encher os bolsos de quem o quer virtualizar, as relações humanas vão perder cada vez mais.

    Major

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  2. De acordo, por isso achei o texto excepcional, uma síntese perfeita do que se vai perdendo todos os dias

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