Usos do erótico: o erótico como poder de Audre Lorde - BIOGRAFIAS ERÓTICAS
Chinese (Simplified)DutchEnglishFrenchGermanGreekItalianJapanesePortugueseRussianSpanishSwedish

Usos do erótico: o erótico como poder de Audre Lorde

Em resposta às críticas do conservador Jesse Helms sobre seu trabalho, assim se expressou:
"Minha sexualidade é parte integrante do que eu sou, e minha poesia é produto da interseção entre eu e meus mundos [...] A objeção de Jesse Helms ao meu trabalho não tem a ver com obscenidade [...] ou mesmo com sexo. Tem a ver com revolução e mudança. [...] Helms sabe que meus escritos estão voltados para a destruição dele e de tudo o que ele defende".


Os Usos do Erótico: O Erótico como Poder, por Audre Lorde

“Há muitos tipos de poder: os que são utilizáveis e os que não são, os reconhecidos e os desconhecidos. 
O erótico é um recurso que mora no interior de nós mesmas, assentado em um plano profundamente feminino e espiritual, e firmemente enraizado no poder de nossos sentimentos não pronunciados e ainda por reconhecer. Para se perpetuar, toda opressão deve corromper ou distorcer as fontes de poder inerentes à cultura das pessoas oprimidas, fontes das quais pode surgir a energia da mudança. No caso das mulheres, isso se traduziu na supressão do erótico como fonte de poder e informação em nossas vidas.

Fomos ensinadas a desconfiar desse recurso, que foi caluniado, insultado e desvalorizado pela sociedade ocidental. De um lado, a superficialidade do erótico foi fomentada como símbolo da inferioridade feminina; de outro lado, as mulheres foram induzidas a sofrer e se sentirem desprezíveis e suspeitas em virtude de sua existência. 
Daí é um pequeno passo até a falsa crença de que, só pela supressão do erótico de nossas vidas e consciências, podemos ser verdadeiramente fortes. Mas tal força é ilusória, porque vem maquilhada no contexto dos modelos masculinos de poder.
Como mulheres, temos desconfiado desse poder que emana de nosso conhecimento mais profundo e irracional. Durante toda nossa vida temos sido alertadas contra ele pelo mundo masculino, que valoriza sua profundidade a ponto de nos manter por perto para que o exercitemos em benefício dos homens, mas ao mesmo tempo a teme demais para sequer examinar a possibilidade de vivê-la por si mesmos. 
Então as mulheres são mantidas numa posição distante/inferior para serem psicologicamente ordenhadas, mais ou menos da mesma forma com que as formigas mantêm colónias de pulgões que forneça o nutrimento que sustenta a vida de seus mestres. 
Mas o erótico oferece um manancial de força revigorante e provocativa à mulher que não teme sua revelação, nem sucumbe à crença de que as sensações são o bastante.
O erótico tem sido frequentemente difamado pelos homens, e usado contra as mulheres. Tem sido tomado como uma sensação confusa, trivial, psicótica e plastificada. É por isso que temos muitas vezes nos afastado da exploração e consideração do erótico como uma fonte de poder e informação, confundindo isso com seu oposto, o pornográfico. Mas a pornografia é uma negação directa do poder do erótico, uma vez que representa a supressão do sentimento verdadeiro. A pornografia enfatiza a sensação sem sentimento.
O erótico é um lugar entre a incipiente consciência de nosso próprio ser e o caos de nossos sentimentos mais fortes. É um senso íntimo de satisfação ao qual, uma vez que o tenhamos vivido, sabemos que podemos almejar. Porque uma vez tendo vivido a completude dessa profundidade de sentimento e reconhecido seu poder, não podemos, por nossa honra e respeito próprio, exigir menos que isso de nós mesmas.
Nunca é fácil demandar o máximo de nós mesmas, de nossas vidas, de nosso trabalho. Almejar a excelência é ir além da mediocridade incentivada por nossa sociedade. Mas sucumbir ao medo do sentimento e trabalhar no limite é um luxo que só pode se permitir quem não tem aspirações, e essas pessoas são aquelas que não desejam guiar seus próprios destinos.

Mas a demanda íntima pela excelência que aprendemos do erótico não pode ser mal entendida como exigir o impossível nem de nós mesmas nem das outras. Tal exigência incapacita todo mundo no processo. Porque o erótico não é sobre o que fazemos; é sobre quão penetrante e inteiramente nós podemos sentir durante o fazer. 

E uma vez que saibamos o tamanho de nossa capacidade de sentir esse senso de satisfação e realização, podemos então observar qual de nossos afãs vitais nos colocam mais perto dessa plenitude.

O sentido de cada coisa que fazemos é fazer nossas vidas, e a vida de nossas crianças, mais ricas e mais viáveis. Pela celebração do erótico em todas as nossas empreitadas, meu trabalho se torna uma decisão consciente – um leito muito esperado em que me deito com gratidão e do qual me levanto empoderada. 
Obviamente, mulheres tão empoderadas são perigosas. Então somos ensinadas a separar a demanda erótica de quase todas as áreas mais vitais de nossas vidas além do sexo. E a negligência às satisfações e fundamentos eróticos de nossa práxis se traduz em desafecto por grande parte do que fazemos. Por exemplo, quantas vezes amamos de verdade nosso trabalho até mesmo quando temos dificuldades nele?
O maior horror de qualquer sistema que define o bom em termos de lucro mais do que em termos de necessidade humana, ou que define a necessidade humana pela exclusão dos componentes psíquicos e emocionais dela – o maior horror desse sistema é que priva de nosso trabalho seu valor erótico, seu poder erótico, e rouba da vida seu interesse e plenitude. 
Tal sistema reduz o trabalho a uma maquete de necessidades, um dever pelo qual ganhamos o pão ou o esquecimento de nós mesmas e de quem amamos. Mas isso é o mesmo que cegar uma pintora e dizer a ela que melhore sua obra, e ainda que goste de pintar. Isso não é só perto do impossível, é também, profundamente, cruel.
Como mulheres, precisamos buscar formas para que nosso mundo possa ser realmente diferente. Estou falando, aqui, é da necessidade de novamente avaliarmos a qualidade de todos os aspectos de nossas vidas e de nosso trabalho, e de como nos movimentamos através e até eles. 
A própria palavra erótico vem do grego eros, a personificação do amor em todos seus aspectos – nascido do Caos, e personificando o poder criativo e a harmonia. Então, quando falo do erótico, o estou pronunciando como uma declaração da força vital das mulheres, daquela energia criativa fortalecida, cujo conhecimento e uso estamos agora retomando em nossa linguagem, nossa história, nosso dançar, nosso amar, nosso trabalho, nossas vidas.
Há tentativas frequentes de se equiparar a pornografia e o erotismo, dois usos diametralmente opostos do sexual. Por causa de tais tentativas, se tornou recorrente separar o espiritual (psíquico e emocional) do político, vê-los como contraditórios ou antitéticos. 
“Como assim, uma revolucionária poética, um traficante de armas que medita?”. Da mesma forma, temos tentado separar o espiritual do erótico, e assim temos reduzido o espiritual a um mundo de afectos insípidos, do asceta que deseja sentir o nada. Mas nada está mais distante da verdade. Porque a posição ascética é uma do mais grandioso medo, da mais extrema imobilidade.
A abstinência severa do asceta torna-se a obsessão dominadora. E não é uma que se embase na auto-disciplina, mas sim na abnegação. A dicotomia entre o espiritual e o político é igualmente falsa, resultante de uma atenção displicente de nosso conhecimento erótico. 
Porque a ponte que os conecta é formada pelo erótico – o sensual –, aquelas expressões físicas, emocionais e psíquicas do que há de mais profundo e forte e farto dentro de cada uma de nós, a ser compartilhado: as paixões do amor, em seus mais fundos significados.
Além do raso, a tão usada expressão “me faz sentir bem” reconhece o poder do erótico como um conhecimento legítimo, pois o que ela significa é o primeiro e mais poderoso guia que conduz a qualquer entendimento. E entendimento nada mais é do que um colo que abriga justamente, e dá sentido, aquela sabedoria nascida do mais fundo. E o erótico é o nutriente e o embalar de toda nossa sabedoria mais profunda. 
O erótico, para mim, acontece de muitas maneiras, e a primeira é fornecendo o poder que vem de compartilhar intensamente qualquer busca com outra pessoa. A partilha do gozo, seja ele físico, emocional, psíquico ou intelectual, monta uma ponte entre quem compartilha, e essa ponte pode ser a base para a compreensão daquilo que não se compartilha, enquanto, e diminuir o medo da suas diferenças.
Outra forma importante por que o erótico opera é ampliando franca e corajosamente minha capacidade de gozar. Assim como meu corpo se expande com a música, se dilatando em reacção a ela, escutando seus ritmos profundos, tudo aquilo que eu sinto também se dilata à experiência eróticamente satisfatória, seja dançando, construindo uma estante de livros, escrevendo um poema, examinando uma ideia
Essa auto-conexão compartilhada é um indicador do gozo que me sei capaz de sentir, um lembrete de minha capacidade de sentimento. E essa sabedoria profunda e insubstituível da minha capacidade ao gozo me põe frente à demanda de que eu viva toda a vida sabendo que essa satisfação é possível, e não precisa ser chamada de casamento, nem deus, nem vida após a morte.
Essa é uma razão pela qual o erótico é tão temido, e tantas vezes relegado unicamente ao quarto, isso quando chega a ser reconhecido. Pois uma vez que começamos a sentir intensamente todos os aspectos de nossas vidas, começamos a esperar de nós mesmas, e de nossos afãs vitais, que estejamos em sintonia com aquele gozo que nos sabemos capazes de viver. 
Nossa sabedoria erótica nos empodera, se torna uma lente pela qual fazemos um escrutínio de todos os aspectos de nossa existência, o que nos leva a examiná-los honestamente em termos de seus significados relativos em nossas vidas. E essa é uma grande responsabilidade, surgida desde dentro de cada uma de nós, de não nos conformarmos com o que é conveniente, com o que é falseado, convenientemente suposto ou meramente seguro.
Durante a segunda guerra mundial, comprávamos potes de plástico hermeticamente fechados com uma margarina incolor dentro, que vinha com uma cápsula pequena e densa de corante amarelo, posta como um topázio do lado de fora da embalagem clara. Deixávamos a margarina no sol um tempo, para amaciar, e aí furávamos a pequena cápsula na massa macia e pálida da margarina. 
Então, pegando a embalagem com cuidado entre os dedos, balançávamos cuidadosamente para frente e para trás, várias vezes, até que a cor estivesse se espalhado completamente por todo o pote de margarina, colorindo-a perfeitamente.
O erótico é esse cerne dentro de mim. Quando liberado de seu invólucro intenso e constritor, ele flui através de minha vida, colorindo-a com o tipo de energia que amplia e sensibiliza e fortalece toda minha experiência. Fomos criadas pra temer o sim dentro de nós, nossos mais profundos desejos. Mas quando aprendemos a identificá-los, aqueles que não melhoram nosso futuro perdem seu poder e podem ser mudados. 
O medo de nossos desejos os mantém suspeitos e indiscriminadamente poderosos, já que suprimir qualquer verdade é dotá-la de uma força insuportável. O medo de que não vamos dar conta de crescer além de quaisquer distorções que possamos achar em nós mesmas é que nos mantém dóceis, leais e obedientes, definidas pelo que vem de fora, e que nos leva a aceitar muitos aspectos da opressão que sofremos por sermos mulheres. 
Quando vivemos fora de nós mesmas, e com isso quero dizer que vivemos por directrizes alheias unicamente, mais que por nossa sabedoria e necessidades internas, quando vivemos longe daquelas trilhas eróticas de dentro de nós mesmas, então nossas vidas estão limitadas pelas formas externas e alheias, e nós nos conformamos com as necessidades de uma estrutura que não é baseada na necessidade humana, e muito menos nas individuais.
Mas quando começamos a viver desde dentro para fora, conectadas ao poder do erótico dentro de nós e permitindo que esse poder preencha e inspire nossas formas de actuar com o mundo que nos rodeia, então é que começamos a ser responsáveis por nós mesmas no sentido mais profundo. 
Pois ao começarmos a identificar nossos sentimentos mais profundos é que desistimos de nos satisfazer com sofrimento e auto-negação, e o embotamento que tantas vezes parece ser a única alternativa a isso em nossa sociedade. Nossos actos contra a opressão se tornam íntegros com sermos, motivados e empoderados desde dentro.
Em contacto com o erótico, eu me rebelo contra a aceitação do enfraquecimento e de todos os estados de meu ser que não são próprios de mim, que me foram impostos, como a resignação, o desespero, o auto-aniquilamento, a depressão, a auto-negação. 
E sim, há uma hierarquia. 
Existe diferença entre pintar a cerca do jardim e escrever um poema, mas é uma só de quantidade. E não há, de onde vejo, nenhuma diferença entre escrever um poema maravilhoso e me mexer na luz do sol junto ao corpo de uma mulher que amo.
Isso me traz a uma última consideração sobre o erótico. Compartilhar o poder dos sentimentos de cada pessoa é diferente de usar os sentimentos de outra pessoa como lenço de papel. Quando não atentamos a nossas experiências, eróticas ou de outro tipo, não estamos compartilhando, e sim usando os sentimentos de quem participa conosco na experiência. E usar alguém sem seu consentimento é abuso.
Para ser utilizado, nosso sentimento erótico tem que ser identificado. A necessidade de compartilhar em profundidade de sentimento é uma necessidade humana. Mas na tradição europeia e norte americana, essa necessidade é satisfeita com certos encontros eróticos ilícitos. 
Tais ocasiões quase sempre se caracterizam por falta de atenção mútua, pela pretensão de chamá-las pelo que não são, seja isso religião, ou arrebatamento, violência da multidão ou brincar de médico. E esse chamamento torto à necessidade e ao ato faz surgir aquela distorção que resulta em pornografia e obscenidade – o abuso do sentimento.
Quando não atentamos à importância do erótico no desenvolvimento e nutrição de nosso poder, ou quando não atentamos a nós mesmas na satisfação de nossas necessidades eróticas quando interagimos com outras, estamos nos usando como objectos de satisfação, ao invés de compartilharmos nosso gozo no satisfazer, ao invés de estabelecer conexões entre nossas parecenças e nossas diferenças. 
Se recusamos a consciência do que estamos sempre sentindo, por mais confortável que isso possa parecer, estamos nos privando de parte da experiência, e nos permitindo ser reduzidas ao pornográfico, ao abusado, ao absurdo.
O erótico não pode ser sentido à nossa revelia. Como uma negra lésbica feminista, tenho um sentimento, um entendimento e uma sabedoria particular por aquelas irmãs com quem eu tenha dançado intensamente, brincado, ou até mesmo brigado. 
E essa participação intensa numa experiência compartilhada é, muitas vezes, o precedente à realização de acções conjuntas que antes não seriam possíveis. Mas as mulheres que continuam agindo exclusivamente sob as normas da tradição masculina europeia e norte americana não podem compartilhar facilmente essa carga erótica. 
Eu sei que ela não estava acessível para mim quando eu tentava adaptar minha consciência a esse modo de vida e sensação. Somente agora é que encontro mais e mais mulheres-identificadas-com mulheres com bravura o bastante para arriscar compartilhar a carga eléctrica do erótico sem dissimulação, e sem distorcer a natureza enormemente poderosa e criativa dessa troca.
Reconhecer o poder do erótico em nossas vidas pode nos dar a energia necessária para fazer mudanças genuínas em nosso mundo, mais que meramente estabelecer uma mudança de personagens no mesmo drama tedioso. 
Pois não só tocamos nossa fonte mais profundamente criativa, mas fazemos o que é fêmeo e auto-afirmativo frente a uma sociedade racista, patriarcal e anti-erótica.”

Sem comentários:

Enviar um comentário

Não deixe de comentar, o seu comentário será sempre bem vindo